“Há dois mil anos, os cristãos fundaram uma comunidade onde a justiça social, conceito que só surgiria muitos e muitos séculos depois, já era largamente praticada”
A primeira Igreja nasceu em meio à pobreza – e a enfrentou, deixando a nós, crentes do século 21, lições preciosas. Aqueles cristãos reagiram à penúria, mostrando-se intolerantes para com a realidade em que os pobres da época estavam imersos. E sua resposta a esta situação foi a solidariedade. O Novo Testamento revela como os irmãos desfaziam-se voluntariamente de suas posses para ajudar os outros, segundo a necessidade de cada um. Eles observavam um padrão mínimo de dignidade humana que, rebaixado, acionava o socorro. Esse padrão não era determinado pelas posses dos doadores, mas sim pela necessidade dos beneficiários, o que indica que a ação era tomada a partir do conceito do direito: o irmão necessitado tinha o direito de ser atendido em sua carência, e portanto, cabia à comunidade a satisfação dessa carência. Simples assim.
É claro que, como Paulo procura deixar claro em sua segunda carta aos tessalonicenses, quem não quisesse trabalhar também não deveria comer. Ou seja, todas as alternativas possíveis à pobreza deveriam ser tentadas – inclusive, a oferta de trabalho –; porém, sem detrimento ao direito do irmão. Essa postura era observada tanto entre as pessoas como entre as congregações, como no caso em que todas as comunidades cristãs já existentes se uniram para socorrer a de Jerusalém. Em outro momento, percebe-se o desenvolvimento de um programa para o sustento das viúvas. Era uma espécie de sistema previdenciário eclesiástico, pelo qual os crentes assumiam a responsabilidade pelas pessoas que não tinham mais acesso ao trabalho remunerado. A coisa era levada tão a sério que uma categoria nova de oficiais – os diáconos – foi acrescentada à Igreja. Cabia a eles o ministério de seguridade social da comunidade.
Desse enfrentamento da pobreza surgiram conceitos de intensa pedagogia capazes de nos surpreender ainda hoje. “Aquele que furtava, não furte mais; antes, trabalhe para ter com que acudir ao necessitado” (Efésios 4.28). Aqui, a vitória sobre o pecado do furto é passar a contribuir com o necessitado. Elaborou-se a seguinte equação: ao invés de lesar o patrimônio alheio, o indivíduo era incentivado a construir seu próprio patrimônio, para, a partir dele, socorrer o próximo. Dá até para pensar que, para o apóstolo, o ato da acumulação se assemelha de alguma maneira ao furto. Há também a sugestão de uma ética do trabalho fundamentada na solidariedade. Quem trabalha e recebe seu salário deve também responsabilizar-se para com o outro, ou seja, criou-se uma espécie de débito de todos para com o necessitado.
Há dois mil anos, aqueles cristãos fundaram uma comunidade onde a justiça social, conceito que só surgiria muitos e muitos séculos depois, já era largamente praticada. “Porque não é para que os outros tenham alívio, e vós, sobrecarga; mas para que haja igualdade, suprindo a vossa abundancia, no presente, a falta daqueles, de modo que a abundancia daqueles venha a suprir a vossa falta; e, assim, haja igualdade, como está escrito: ‘O que muito colheu não teve demais; e o que pouco colheu, não teve falta’” (II Coríntios 8.13-15). Como estas palavras foram ditas no contexto da coleta para a Igreja em Jerusalém, o que se vê é uma valorização do trabalho solidário, algo semelhante ao conceito de revolução permanente. Em outras palavras, um acordo internacional pela erradicação da pobreza e pela busca da igualdade entre as nações. Para usar termos contemporâneos, podemos dizer que os superavitários se responsabilizavam pelos deficitários. Havia um consenso de que todos deveriam trabalham por todos, tendo a humanidade como foco. Em sendo assim, a fé cristã genuína deve ter uma proposta de revolução quanto ao fim da economia e quanto ao parâmetro para a geopolítica internacional.
Nas palavras de Paulo àquelas comunidades cristãs, há outro estímulo direto: “E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem” (II Tessalonicenses 3.13). Este estímulo, dito no contexto da tentativa de alguns de se aproveitarem da bondade da comunidade, desafia toda a Igreja a estabelecer esses valores como inegociáveis, a despeito de quaisquer tentativas de abuso. E onde a ética dos apóstolos coloca o trabalhador? Como primeiro e privilegiado beneficiário de seu esforço, a exemplo do boi, que não pode ser impedido de ser o primeiro a desfrutar de sua produção. “O lavrador que trabalha deve ser o primeiro a participar dos frutos”, enfatiza Paulo em II Timóteo 2.6 – até porque, como o trabalho é para a solidariedade voluntária, o trabalhador, para poder exercer essa partilha, precisa ter o que partilhar. Aqui, mais do que um princípio ético, há um postulado econômico: a de que quem produz tem de ser o primeiro a desfrutar do resultado de seu trabalho. O desenvolvimento deste primado há de redefinir a administração dos meios de produção e do lucro.
A primeira Igreja, na sua intolerância para com o estado de pobreza, propôs abordagens desafiadoras, pertinentes e que mantêm sua atualidade.
Ariovaldo Ramos
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