22 setembro, 2009

Essa Crueza

Essa crueza parece estar totalmente ausente do relato da criação em Gênesis. Não se encontram aqui as mortes, decapitações, violência sexual e derramamento de sangue que recebem destaque nos mitos originais de muitas culturas. A criação em Gênesis 1 e 2, em comparação, aparenta ser um processo disciplinado e austero, orientado por uma rigorosa assepsia.

A violência criativa persiste, no entanto, mesmo nos recintos sanitizados de Gênesis. Se não a vemos é porque em parte a agressão reside sob a superfície; em parte porque aprendemos a fechar os olhos para ela.

Em Gênesis a iniciativa divina da criação é regida por duas atitudes que se alternam, a criação e a organização – ambas arbitrárias e, cada uma a seu modo, inerentemente violentas. Extrair existência do que não existe é uma agressão contra a suficiência do nada e de Deus; organizar o que foi criado em categorias é uma agressão contra a legitimidade do caos pré-existente e da relação divina com ele.

Em especial, a narrativa bíblica investe na noção de que para criar é preciso promover sem pausa a separação. Qualquer que sejam os termos originais ou as escolhas da tradução, a criação bíblica é caracterizado por verbos inerentemente agressivos: dividir, fender, separar, extrair – sejam seus objetos terra ou mar, luz ou trevas, céu ou terra, dia ou noite, homem ou mulher.

A criação da mulher talvez seja o melhor exemplo da tentativa da narrativa de minimizar o caráter agressivo da criação, mas o fato do homem estar anestesiado durante a operação não altera a natureza violenta da cirurgia.

A grande agressão, no entanto, é reservada para o modo como Adão foi arrancado de modo não natural da terra com que foi moldado. Estrelas, peixes e pássaros surgiram reluzindo do éter e da palavra divina, mas o homem foi “tomado”, praticamente subtraído, do solo pela mão divina. Quando lembra que essa sua estátua deverá voltar fatalmente ao pó – porque não passa de pó – Deus reduz a vida humana a um terrível débito que a criatura terá de pagar contra a violência do criador, sua infração de ter arrancado do solo uma ilegítima porção.

Os reflexos dessas transgressões divinas aparecem claramente no modo como Deus distribui consequências para a transgressão humana. No veredito de Deus a criação e a geração de vida deverão permanecer para o ser humano processos tão violentos quanto foram para ele. A fim de extrair fertilidade do solo, o homem deverá derramar do seu suor e agredir perpetuamente o solo com o arado; a fim de dar a luz e presentear o mundo com a vida, a mulher terá de sofrer e aceitar agressão contra si mesma.

Também para o autor de Gênesis todo ato criativo é um ato de violência, e há algo de terrível na autodeterminação. Haverá algum modo legítimo de se exercer o poder? O conflito que resta, e do qual se ocuparão todas as páginas restantes da Bíblia, está em se, e de que modo, a autonomia e a potência podem ser administradas.

Paulo Brabo

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