23 março, 2009

O céu pode esperar

A terra prometida não está em nenhuma latitude ou longitude específica.


Faz tempo que deixei de relacionar a salvação com a ida para o céu depois da morte. Em minha consciência religiosa, aquela noção de céu como um lugar reservado aos que foram declarados justos no tribunal de Deus ficou para trás. Hoje, ela ocupa o lugar de uma metáfora possível e legítima, especialmente para quem observa superficialmente a teologia paulina. Mas o caminho “terra-tribunal-céu” é apenas uma forma de representar a relação entre Deus e o ser humano, notadamente no que se refere ao destino eterno deste último. Mas há outras metáforas relacionando o Senhor e os homens além das figuras de juiz e réus – como, por exemplo, rei e súditos; general e soldados; senhor e escravos; mestre e discípulos. Das figuras bíblicas, a predileta de Jesus era pai e filho. Foi assim que nos ensinou a evocar e invocar o nome de Deus: “Abba”. Assim, podemos compreender que a salvação é a formação da pessoa de Jesus Cristo em cada ser humano, de modo que todos sejam conformes à imagem do unigênito filho de Deus. O ser humano criado à imagem e semelhança de Deus deve ser transformado à imagem de Jesus Cristo, “o qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse” (Colossenses 1.15,19). Nesse sentido, a salvação pode ser compreendida como processo de “humanização”, que Joshua Heschel entendia como “superação da condição humana”, ou mais precisamente, como “cristificação”, uma vez que este humano em plenitude é como Cristo, participante da natureza de Deus, conforme II Pedro 1.4.

A salvação em Jesus, portanto, é muito menos ir para determinado lugar do que tornar-se um tipo de pessoa. O que importa é a transformação do indivíduo, para que a imago Dei lhe seja restaurada, não mais à semelhança de Adão, mas do Cristo de Deus. Tal compreensão confere sentido à existência, não apenas de direção, mas de significado. Quem acorda na segunda-feira pensando no céu após a morte tende a desenvolver a fé expectante (que espera o porvir), enquanto aquele que se levanta da cama almejando ser como Cristo está mais próximo da fé enactante, ou seja, fé em ação, que está engajada no vir a ser.

O processo no qual Deus nos convida a vir a ser como Cristo pode ser deduzido de quatro eventos paradigmáticos, que por sua vez sugerem quatro estágios da peregrinação espiritual. O primeiro está contido no chamamento de Adão após seu acesso ao fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, seguido de fuga. Conforme Gênesis 3.9, Deus passeia pelo jardim e o chama, dizendo: “Adão, onde você está?” Evidentemente, o Senhor não queria descobrir a localização geográfica de Adão. Sua convocação era um chamamento à responsabilidade. Adão aparece, mas ainda escondido atrás de sua mulher, e depois ambos se escondem atrás da serpente. Um passo no processo de humanização é o acolhimento da responsabilidade – e a consequente dignidade que o direito de viver e existir impõe a todo ser humano.

O segundo evento é a chamada de Abraão: “Sai da tua terra e da casa de teu pai, do meio da tua parentela, para uma terra que eu te mostrarei” (Gênesis 12.1-3). O rabino Bonder observa que nessa vocação não há endereço, só chamado: “Não se trata de uma trajetória para um lugar, mas sim de um caminho para si. Lech Lechá – assim convoca Deus a Abraão –, vá a si, até a terra que eu lhe mostrarei. O destino é o próprio meio. Simbólico da própria vida – à qual nos apegamos como se fosse a terra, a posse maior. Na fala divina, o objeto não é a terra, é o caminhar, é o ir”. Mais um passo na direção da cristificação é o seguimento de Jesus: “Vinde após mim e eu vos farei pescadores de homens”, o que exige deixar tudo o mais (Mateus 4.18-20).

O terceiro evento é o momento quando Deus pergunta pelo nome de Jacó, narrado em Gênesis 32.27. A expressão “Qual é o teu nome?” quer saber da identidade real, em detrimento da identidade idealizada, projetada ou assumida. Enquanto a personagem não for desmascarada, a pessoa à imagem de Deus e do seu Cristo não encontrarão espaço. Finalmente, ouvimos Deus dizer a Moisés: “Tira os sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa” (Êxodo 3.5). Bonder explica novamente: “A descoberta final de todo peregrino, de todo andarilho que caminha para si mesmo, é que somos fundamentalistas. Esses fundamentos são os sapatos com os quais caminhamos pela vida. Esta relação tão ambígua entre o calçado e o caminhante, entre o fundamento e a essência, ou entre a sola e o solo, é o território por onde se dirige Abraão. Esta terra prometida não está em nenhuma latitude e longitude específica. Trata-se de uma viagem não geográfica. A vulnerabilidade maior está nos fundamentos, nas crenças básicas que carregamos em nossa identidade”.

É também imprescindível passo no processo humanização-cristificação abandonar as teorias e se entregar ao mistério sagrado – de nada vale ser doutor da Lei; importa renascer: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus” (João 3.3).

Ed Rene Kivitz

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