31 janeiro, 2009

Onde está a maldade?

Onde está a maldade da serpente, se tudo que ela tem apresentar ao homem diante da inevitável transgressão é a verdade? Se a serpente não se rebaixa a acenar com nenhuma promessa falsa, porque a tradição fará com que Jesus acuse-a de mentirosa por excelência? Se ninguém morre, porque Jesus legislará que ela é assassina “desde o princípio”?

Para encontrar uma resposta satisfatória será preciso aguardar a entrada em cena do próprio Jesus. Neste meio tempo, se examinarmos a própria narrativa com o devido distanciamento poderemos encontrar indicações importantes.

Para retraçar o trajeto tortuoso da serpente será preciso enfatizar a absoluta neutralidade moral da interdição original – e se retorno com tanta frequência a este ponto é porque estamos tão formidavelmente habituados a pensar o contrário.

“Não coma desta árvore, caso contrário vai morrer”. A interdição original é menos moral do que mecânica: não faça A, caso contrário B será inevitável. É menos uma proibição – e é certamente menos um mandamento – do que um aviso. Transgredir pode se mostrar tremendamente imprudente, mas não é, em qualquer sentido, errado.

Daqui a alguns minutos, quando o homem já tiver transgredido, mas antes de ter apontado a participação da serpente no caminho da transgressão, é preciso ouvir com atenção aquilo que Deus não dirá. Significativamente, Deus não perguntará “Adão, porque você me traiu?” ou “porque me desobedeceu?” ou “porque pecou?”. Tudo que ele irá ressaltar é a natureza mecânica da transgressão: “você comeu da árvore que eu mandei que não comesse?” Você fez A, que eu disse para não fazer? Para o próprio Deus, a transgressão é mero interruptor que não deveria ter sido acionado: não implica em traição, não implica em desobediência e não implica em pecado. Em termos narrativos, poderia ter ocasionado a Queda e a Morte, mas não precisaria ter ocasionado o pecado.

Acontece que no intervalo entre a proibição e a transgressão a narrativa acolheu um novo personagem, e deverá tolerar estoicamente a sua intervenção. No intervalo entre a proibição e a transgressão o novo personagem injetará no conflito o seu veneno: isto é, no meio do caminho havia uma serpente. Seu papel não é fazer a história avançar (o que teria acontecido fatalmente sem ele), mas imprimir à narrativa um novo matiz teológico – ou, para ser mais preciso, antropológico.

Quando transmite ao homem a proibição, Deus fala do alto de sua exaltada e bem-intencionada posição; a serpente, porém, falará ao homem a partir do seu próprio nível, diretamente nos seus ouvidos. Não é de modo algum por acaso que seja assim. Se toda a bondade que há no homem é divina, toda a maldade que há na serpente é humana.

Paulo Brabo

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