O caminho é o da zona norte de Paris. Conto os minutos até chegar ali. Na manhã preguiçosa de domingo do alto verão parisiense, na saída da estação de metrô mais próxima, a visão é cosmopolita: no mercado a céu aberto, um retrato da típica mistura de raças e ínguas, cores e tons, tão comum às periferias discriminadas e esquecidas no fundo do quintal de um canto qualquer das grandes metrópoles do mundo.
Mais alguns quarteirões, uma tomada à esquerda e eis que surge, imponente, um enorme santuário. A visão interior de seus arcos góticos é impressionante: eles são como bocarras escancaradas, prontas para engolir-me, insignificante criatura, por entre suas gargantas sem fundo, imensas e aterradoras. O percurso do gesto antropofágico, no entanto, ao contrário do que determina a lei da gravidade, é para cima. Elas parecem ter sido feitas com o intuito de transportar suas vítimas por um túnel extenso e escuro que as leve na direção do grande e insondável mistério. Mistério que a profundidade impressionante daqueles arcos múltiplos convida-me a reverenciar.
A basílica, antiga e bela, palco das cerimônias de coroação dos monarcas franceses e onde se encontram os túmulos de muitos deles, foi construída em honra a São Dionísio, patrono da nação francesa. A história desse personagem ilustre do cristianismo está cheia de detalhes pitorescos. Durante muito tempo se creu que ele teria sido Dionísio, discípulo de Paulo, convertido por ocasião da famosa pregação do apóstolo no Areópago em Atenas, registrada no livro de Atos dos Apóstolos. Da Grécia, Dionísio teria partido para a França onde se tornou um grande líder, foi decapitado no Monte dos Mártires (Montmartre), após sua execução teve seu próprio tronco erguido com a ajuda de anjos, caminhou, levou a própria cabeça nos braços por duas milhas até o local onde tombou e foi sepultado, no terreno onde foi erguida a basílica, em honra a Saint-Denis. O tempo se encarregou de mostrar que o personagem reverenciado poderia ter sido outra pessoa, outro Dionísio.
Um conjunto de textos sagrados de grande influência na idade média também foi atribuído a Dionísio, o Areopagita. O conteúdo deles, no entanto, demonstra conceitos que surgiram bem depois do primeiro século e que, portanto, não poderiam ter sido escritos por um cristão daquele período. Eles têm sido, desde então, atribuídos a um monge sírio, também de nome Dionísio, do século VI. A canção "Mistério" foi inspirada em um destes textos, a obra "Dos Nomes Divinos".
Eu não vou me aventurar a fazer teologia. Não sou teólogo. Mas, a exemplo de muita gente, vivo, penso, repenso, sonho, reflito sobre a vida cotidiana e sobre coisas que estão além de mim e de meu tempo. Pondero sobre a beleza que enxergo nas artes, na infinita variedade e diversidade da natureza, na complexidade e sensibilidade de homens e de mulheres sobre quem leio, ouço falar e com quem convivo. E isso tudo me faz pensar em Deus. Logo, me faz fazer teologia. E assim, do pensamento em Deus às reflexões de Dionísio, depois de constatado o fato de que ele não era o discípulo cristão do primeiro século, mas sim outro do início do VI (o que importa?), é um pulo.
Em "Dos Nomes...", Dionísio afirma que Deus não pode ser expresso em palavras. Eu então olho ao meu redor, e me pergunto sobre as milhares de placas de igreja dependuradas por toda parte em grandes e pequenas cidades, algumas delas alardeando, por meio de definições claras, todos os atributos divinos, suas estratégias de ação no mundo, seus sentimentos e pensamentos, definidos e fechados, racionais e objetivos.
Diante delas, a literatura de Dionísio me consola. Alguém perdido no tempo, em uma época em que Deus era o centro de tudo, para o bem e para o mal, pensa a seu respeito com reverência – não o respeito por medo, mas a constatação de uma grandeza indescritível por qualquer linguagem humana e que nos convida, diante da visão ainda que pálida e difusa do grande Mistério a olhar pra vida com a mesma reverência e o mesmo respeito daqueles que diante das muitas representações do divino se apavoram. Só que sem medo. E o nobre líder e eu nos conectamos.
Tempo e espaço não são obstáculos ao nosso diálogo. Tornamo-nos amigos de jornada, companheiros de ignorância, parceiros no desconhecimento, colaboradores mútuos na coragem e no encantamento diante da beleza desse Mistério.
(Trecho do livro Somos Um - 108 p. Grapho Editores Associados, para comprar)
Jorge Camargo
Mais alguns quarteirões, uma tomada à esquerda e eis que surge, imponente, um enorme santuário. A visão interior de seus arcos góticos é impressionante: eles são como bocarras escancaradas, prontas para engolir-me, insignificante criatura, por entre suas gargantas sem fundo, imensas e aterradoras. O percurso do gesto antropofágico, no entanto, ao contrário do que determina a lei da gravidade, é para cima. Elas parecem ter sido feitas com o intuito de transportar suas vítimas por um túnel extenso e escuro que as leve na direção do grande e insondável mistério. Mistério que a profundidade impressionante daqueles arcos múltiplos convida-me a reverenciar.
A basílica, antiga e bela, palco das cerimônias de coroação dos monarcas franceses e onde se encontram os túmulos de muitos deles, foi construída em honra a São Dionísio, patrono da nação francesa. A história desse personagem ilustre do cristianismo está cheia de detalhes pitorescos. Durante muito tempo se creu que ele teria sido Dionísio, discípulo de Paulo, convertido por ocasião da famosa pregação do apóstolo no Areópago em Atenas, registrada no livro de Atos dos Apóstolos. Da Grécia, Dionísio teria partido para a França onde se tornou um grande líder, foi decapitado no Monte dos Mártires (Montmartre), após sua execução teve seu próprio tronco erguido com a ajuda de anjos, caminhou, levou a própria cabeça nos braços por duas milhas até o local onde tombou e foi sepultado, no terreno onde foi erguida a basílica, em honra a Saint-Denis. O tempo se encarregou de mostrar que o personagem reverenciado poderia ter sido outra pessoa, outro Dionísio.
Um conjunto de textos sagrados de grande influência na idade média também foi atribuído a Dionísio, o Areopagita. O conteúdo deles, no entanto, demonstra conceitos que surgiram bem depois do primeiro século e que, portanto, não poderiam ter sido escritos por um cristão daquele período. Eles têm sido, desde então, atribuídos a um monge sírio, também de nome Dionísio, do século VI. A canção "Mistério" foi inspirada em um destes textos, a obra "Dos Nomes Divinos".
Eu não vou me aventurar a fazer teologia. Não sou teólogo. Mas, a exemplo de muita gente, vivo, penso, repenso, sonho, reflito sobre a vida cotidiana e sobre coisas que estão além de mim e de meu tempo. Pondero sobre a beleza que enxergo nas artes, na infinita variedade e diversidade da natureza, na complexidade e sensibilidade de homens e de mulheres sobre quem leio, ouço falar e com quem convivo. E isso tudo me faz pensar em Deus. Logo, me faz fazer teologia. E assim, do pensamento em Deus às reflexões de Dionísio, depois de constatado o fato de que ele não era o discípulo cristão do primeiro século, mas sim outro do início do VI (o que importa?), é um pulo.
Em "Dos Nomes...", Dionísio afirma que Deus não pode ser expresso em palavras. Eu então olho ao meu redor, e me pergunto sobre as milhares de placas de igreja dependuradas por toda parte em grandes e pequenas cidades, algumas delas alardeando, por meio de definições claras, todos os atributos divinos, suas estratégias de ação no mundo, seus sentimentos e pensamentos, definidos e fechados, racionais e objetivos.
Diante delas, a literatura de Dionísio me consola. Alguém perdido no tempo, em uma época em que Deus era o centro de tudo, para o bem e para o mal, pensa a seu respeito com reverência – não o respeito por medo, mas a constatação de uma grandeza indescritível por qualquer linguagem humana e que nos convida, diante da visão ainda que pálida e difusa do grande Mistério a olhar pra vida com a mesma reverência e o mesmo respeito daqueles que diante das muitas representações do divino se apavoram. Só que sem medo. E o nobre líder e eu nos conectamos.
Tempo e espaço não são obstáculos ao nosso diálogo. Tornamo-nos amigos de jornada, companheiros de ignorância, parceiros no desconhecimento, colaboradores mútuos na coragem e no encantamento diante da beleza desse Mistério.
(Trecho do livro Somos Um - 108 p. Grapho Editores Associados, para comprar)
Jorge Camargo
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