17 março, 2008

“A quem muito se lhe deu muito lhe se pedirá”

Como vocês já sabem, Albert Schweitzer é uma das pessoas que mais admiro. Teólogo, filósofo, prêmio Goethe de literatura, concertista de órgão, especialista em Bach, sobre quem escreveu uma obra clássica, prêmio Nobel da Paz, aos 30 anos abandonou tudo. Mudou a direção do seu vôo. Profundamente místico, com grande compaixão pelos que sofriam, resolveu estudar medicina e passar o resto de sua vida num lugarejo miserável, no coração da África. Ele levava a sério as palavras de Jesus. “A quem muito se lhe deu, muito se lhe pedirá”. E ele pensava: “Muito, muitíssimo me foi dado; muito, muitíssimo eu tenho que dar”. E deu a sua vida inteira. Jamais passaria pela sua cabeça imaginar que ele, em virtude do muito que havia recebido, deveria gozar de privilégios especiais. Lembrei-me dele ao ler sobre aqueles que, havendo recebido muito, argumentam que, por haverem recebido muito têm o direito de receber mais ainda. O Brasil é o país onde o que vale é o contrário do que diz Jesus, e isso a despeito dos crucifixos e benzeções: Vale um outro evangelho: “A quem muito se lhe deu, muito mais se lhe dará.” Se não é de Jesus, de quem será? Não me atrevo a sugerir. É assim que aqueles que foram encarregados democraticamente de proteger os fracos fazem leis em benefício próprio, leis que acrescentam só a eles privilégios dos quais o povo comum está excluído. Isso não é coisa nova. Os profetas já denunciavam os pastores que engordavam com a carne das ovelhas que deveriam proteger. Acho sim, que se há um grupo que é merecedor de leis especiais que lhe garantam privilégios, esse grupo são as crianças. As crianças abandonadas são uma ferida horrível numa sociedade de classes privilegiadas e arrogantes que vivem em palácios... Como é bem sabido, “quem semeia ventos colhe tempestades...”

Rubem Alves

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