27 novembro, 2007

Crônica de uma morte anunciada

O Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça, mas tratamos muito rápido de corrigir essa sua peculiaridade. Miríades e miríades de edifícios ao redor do mundo, tendo pouco em comum seja por dentro ou por fora, seja em concepção ou execução, requerem austeramente para si o status de templos, igrejas e congregações cristãs. Esses edifícios a as assembléias que eles abrigam devem ser interpretados, supõe-se, como evidência forte e palpável de que Jesus e sua mensagem permanecem relevantes para a nossa época — seriam evidência, para um mundo incrédulo, de que ele está no meio de nós.

De quem foi a idéia de chamar essas pequenas assembléias e seus lugares de reunião de “igrejas”? De quem foi a idéia de sugerir que essas pequenas assembléias deveriam durar indefinidamente? De quem foi a idéia de sugerir que o reino de Deus e a autoridade da sua boa nova deveriam ser de alguma forma comprovados ou evidenciados pelo número, pela devoção ou pelo nosso sucesso na multiplicação dessas unidades administrativas?

Do Novo Testamento não foi.

O Filho do Homem, como se sabe, gastava praticamente todo o seu tempo ensinando sobre a formidável natureza do reino de Deus e provendo evidência da sobrenatural proximidade desse reino da vida real. Ele não ofereceu mais do que comparações para definir a misteriosa natureza desse reinado de Deus, mas sabemos por essas indicações que trata-se de projeto muitas vezes mais amplo, ambicioso e abrangente do que aquilo que o próprio Jesus chama, uma vez ou outra, de sua “igreja” — assim mesmo, sempre no singular.

A categórica ordem final de Jesus aos seus seguidores foi que saíssem pelo mundo fazendo discípulos — não plantando edifícios, não fundando assembléias, não multiplicando unidades administrativas. O livro de Atos e as cartas dão testemunho das soluções a que recorreram os seguidores de Jesus para colocar em prática essa convocação.

Sabemos por esses registros que, por razões estratégicas, os discípulos em construção reuniam-se em grupos, invariavelmente na casa de alguém. A esses agrupamentos as cartas dão o nome de “a igreja que reúne-se na casa de [alguém]” ou “a igreja em [tal cidade]”. Estava em andamento a primeira fase de implantação (ou, talvez em melhores termos, do descobrimento) do reino de Deus na terra.

A questão é que com o tempo esses agrupamentos passaram de meio a fim. A inércia e a acomodação adiaram o reino: os ajuntamentos temporários e estratégicos da igreja passaram de alguma forma a ser conhecidos e reconhecidos como “igrejas”, entidades em si mesmas que requeriam manutenção e incessante validação para permanecerem relevantes. Logo esses entrepostos foram protegidos por uma camada do verniz da religiosidade que o próprio Jesus procurara demolir; seus edifícios passaram a ser conhecidos, anacronicamente, como “templos” e seus líderes, como “sacerdotes”. Acabamos criando uma vaca sagrada que ao mesmo tempo nos embaraça e temos dó de imolar.

O que seria necessário para que os cristãos passassem a encarar a igreja local como meio precário para um fim cujo sucesso prescinde necessariamente do meio? O que seria necessário para que passássemos a ver as igrejas locais como bombas-relógio no sentido mais positivo do termo — empreendimentos projetados para terem um começo, um meio e um glorioso fim? O que seria necessário para que passássemos a ver o cenário de uma igreja fechando definitivamente as suas portas com esperança em vez de horror — como evidência, na verdade, de que as portas do inferno não prevaleceram contra ela? Quando seremos capazes de dizer “é hora de descermos desse monte” em vez de “façamos aqui tendas”? O que seria necessário para que reagíssemos ao anúncio do fim com a expectativa confiante de Jesus em vez do “de modo nenhum isso aconteça” de Pedro?

O reino de Deus está no meio de nós — Jesus anunciava —, por isso toda espécie de desintegração, mesmo daquilo que nos parece mais caro, deveria ser bem-vinda. Na perspectiva mais ampla da boa nova, a mais bem-intencionada estirpe de empreendimento espiritual deve ser capaz de abraçar e planejar integralmente a sua precariedade. Como o grupo dos doze discípulos, como a igreja de Jerusalém, como o próprio Jesus, deveríamos ser capazes de conviver de forma criativa e expectante com a perspectiva de uma morte anunciada.

Paulo Brabo

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