No espelho, olhos nos olhos, reconheço três inimigos em minha alma.
Eu os encaro, mas sei: há tempo eles me espreitam desde as esquinas das
madrugadas insones. Crio coragem para chamar os três adversários pelo
nome: fracasso, impotência e culpa.
Fracasso é sentimento, não constatação. Não é necessária qualquer
derrota para alguém se sentir fracassado. Portanto, sentimento de
fracasso vem com o destreino de lidar com inadequações. Depois de
décadas absorvendo um discurso de perfeição, sofro desse sentimento. A
minha fraqueza parece maior do que realmente é. Sem ter acertado alvos, o
peso de incontáveis erros agride. Demandas religiosas, familiares ou
sociais deixam qualquer um arfando. A fadiga de ter que dissimular
inaptidões sulca rugas profundas.
Continuo calouro, desafino a melodia da vida. Piso na bola. Perco
belos gols a poucos metros da trave. Se me entrevistarem sobre
convicções, sei, vou gaguejar. Faço meu caminho, mas tropeço nos
cadarços soltos. Obrigado a ouvir todos os dias um discurso de
perfeição, arquejo. Não galguei os degraus da piedade.
Sobram pregadores da culpa, especialistas em conscientizar qualquer
um sobre as exigências divinas. Só agora entendo as pessoas que
frequentam alguma religião porque gostam de se constrangerem com suas
imperfeições.
Diante do espelho, despedaço o ícone que tentaram fazer de mim. Não
alimento o mito. Aconselho a alma a permanecer comum. Lembro a mim mesmo
que nenhuma máscara pode ficar grudada na cara quando eu estiver só.
Os anos passaram. Agora, mais do que nunca, vejo-me obrigado a
admitir impotência. E a me despir do desempenho dos ungidos – ainda não
aprendi a decretar milagre com a eficiência de muitos sacerdotes.
Depois de anos lidando com manifestações de poder espiritual, quero
fugir da tentação de encabrestar o próximo. Depois que falei, preguei e
ensinei tenho que admitir: os meus argumentos não passavam de discurso.
Para muitos, falhei em convencer.
Vai chegando ao fim a minha alucinação de inteligência. Que bobagem
imaginar-me genial. Nada me chegou fácil. Aprendi devagar. Continuo
esquecendo o que decoro. Saber muito nunca me ajudou na perspicácia. Fui
bronco na hora de antecipar incidentes. E não soube proteger as costas
das conspirações armadas para me destruir. Não intui o desenrolar dos
fatos mais cruéis.
Ensinaram que erros passados voltam como bumerangue. Eu sei: o
objetivo da ameaça é manter as pessoas boas. Mas, se transgredi a lei e
ofendi a Divindade, suspeito que alguns consideram a minha grave
punição. Também me ensinaram: “se a maldade dos outros for grande,
saiba, você é pior; quanto mais cabisbaixo você andar, maior será sua
disposição de penitenciar-se; e quanto maior a penitência, mais alegria
no céu”. Hoje desconfio desse discurso.
Depois que admito fracasso, impotência e culpa, faço as pazes comigo
mesmo na solidão do espelho. Pergunto sozinho: quem subiu o sarrafo tão
alto? De onde veio a possibilidade de controlar as variáveis da
existência? Qual o sentido terapêutico da culpa? Autocomiseração serve a
quais interesses?
Não preciso desempenhar para ser aceito – quem mente para si mesmo
nunca será livre. Não quero ser perfeito – despistar sentimento só
apequena a vida.
Ergo a cabeça. Meu valor não depende de cumprir roteiros alheios.
Pisoteio o sentimento de fracasso. Procuro desdenhar os acenos da
vaidade. Faço de tudo para transformar a culpa em aliada.
Soli Deo Gloria
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