27 novembro, 2010

Toda história sobre transgressão

Toda história sobre transgressão é na verdade sobre a possibilidade e as implicações do livre-arbítrio.

Imaginemos o reverso: imaginemos uma narrativa em que os primeiros seres humanos, confrontados diante das mesmas facilidades e do eloqüente esplendor do fruto proibido, ousam um passo definitivo para trás. Por virtude ou timidez, preferem não conhecer o sabor da transgressão: recuam à casa, para o familiar abraço de Deus e sua irrestrita aprovação.

Nessa versão não contada da história os protagonistas viveriam em bem-aventurança eterna, mas o leitor – e a narrativa, será preciso constantemente lembrar, existe para o leitor – seria deixado em dúvida circular sobre o ponto essencial da trama.

O problema está em que, em termos dramáticos, nenhum final é verdadeiramente feliz antes que o conflito seja confrontado, antes que a verdadeira natureza do obstáculo seja encarada de frente. Nessa versão corrigida e correta da história o conflito teria sido apenas contornado; não teria sido vencido, pelo que a condição final dos protagonistas não poderia ser considerada literariamente satisfatória (emocionalmente satisfatória para o leitor). Em termos literários sua condição não teria, na verdade, como ser considerada final. Se o conflito não os aperta ao ponto do rompimento, se não os leva a experimentar o que poderiam efetivamente perder, somos levados a ler como ilusórios tanto a posição do obstáculo na história quanto sua resolução feliz.

E, por deixar o leitor em dúvida com relação a esse ponto fundamental, essa versão da história seria bem menos inofensiva do que parece. Teriam sido Adão e Eva verdadeiramente livres? Se o desenrolar da trama não permite que escolham o que não deve ser escolhido, como de fato saber?

Não se trata, mais uma vez, de conferir à história uma essência moral, coisa que a narrativa por si mesma não se rebaixa a fazer, mas de reconhecer nela a mais antiga especulação literária sobre a natureza da realidade. Que forças determinam a condição do ser humano? O homem é controlado pelo destino (isto é, por forças irresistíveis e externas a ele mesmo) ou pelas suas próprias escolhas? O livre-arbítrio existe ou é uma ilusão? Se existisse, quais seriam as suas consequências? Se existisse, a condição humana poderia ter um final feliz?

Para nos levar a esse espaço de simultâneos terror e legitimidade, o protagonista precisará avançar o limiar da sua zona de conforto. Para dar-nos indícios de que ele é livre e para que ele mesmo possa conhecer o terrível preço da liberdade, o conflito precisará apertar o protagonista ao ponto do irremediável. Adão e Eva precisam saber quem realmente são, e é somente depois que o narrador dirá deles que “seus olhos foram abertos”. Para conhecer quem realmente é Jonas terá de conhecer o ventre da baleia. No universo da narrativa, a transgressão é metáfora necessária para o autoconhecimento.

Paulo Brabo

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