01 julho, 2009

Entre o bocejo e a taquicardia

Ouvi tantas vezes que não consigo dar um rosto ao jargão. ‘A lógica de Deus é diferente da lógica humana’, ou ‘Deus não cabe na lógica humana!’ Diz-se como castração de qualquer mente ávida. Aquela que apenas anseia por melhor compreensão do que já se fala sobre Deus. Esse tipo entediante de argumentação poderia muito bem ser substituída por ‘vamos mudar de assunto porque estou boiando’, ou ‘já que eu não consigo contrapor, que tal desdenhar?’, ou ainda, ‘se quiser uma vida devocional, é melhor emburrecer um pouco’.

É o tipo de frase que parece mais um ruído que uma mensagem. Ela não diz nada. Vejamos. A lógica é qualquer construção lingüística que busca organizar nossa compreensão de mundo. Ninguém pensa sem palavras. Ninguém fala sem uma lógica. Uma palavra só é linguagem, e não ruído, porque significa algo. E só significa porque está conectada a outras palavras e sentidos que compõem um esquema conceitual, ou um paradigma, ou uma lógica, ou ainda, uma visão de mundo. Sequer dizemos ‘Deus’ sem uma lógica.

Um Deus sem lógica é um ruído absurdo. É claro que nenhuma lógica pode pretender descrever Deus como uma realidade em si. Porque nenhuma lógica pode sequer ter a descrição como um objetivo, muito menos uma realidade em si. Toda lógica é apenas uma forma de resolver problemas. Nunca a descrição definitiva e exaustiva de uma realidade. Uma lógica superada é uma lógica que não consegue mais resolver os novos problemas. Uma nova lógica é uma lógica que consegue resolver novos problemas.

Estou sofrendo de uma síndrome vexatória. Do bocejo ante o inefável. Fico entediado facilmente com as falas do tipo piedosa e devocional. Principalmente aquelas que enrugam as testas e comprimem os olhos para estampar certa resignação por crer em um ser absoluto, incondicionado e, portanto, inexplicável como Deus. Preciso sempre esconder o rosto, porque não resisto ao bocejo.

Um Deus absoluto é enfadonho. Tão enfadonho quanto tentar ler um livro sobre um assunto completamente desconhecido. Com termos técnicos inacessíveis. Ou assistir a uma partida de um jogo de regras desconhecidas, narrado em uma língua nunca antes ouvida por você. Ainda assim, meus exemplos não alcançam o tédio do absoluto. Porque em ambas situações haverá alguns pontos de afinidade. Uma frase aqui e outra ali serão compreendidas entre tantos termos técnicos. Um movimento ou outro do jogo fará algum sentido depois de algum tempo de observação. Mas um ser absoluto é sempre um chatíssimo “totalmente outro”. Não há nada para se compreender dele. Não há nada para dele se dizer.

Só existe compreensão de coisas relativas. Só há conversa e comunhão entre os relativos. Apenas os relativos se relacionam (a brincadeira com as palavras de mesma raiz e sentido foi irresistível). O Absoluto é solitário. Intransitivo. Intangível. É a mesmíssima eterna reafirmação de si. Ou seja. O Chato.

Nem Deus teria agüentado, acredito, tanta solidão. Desistiu já antes da fundação dos tempos e decidiu relativizar-se. A criação do humano é a taquicardia que faltava em Deus. Mas como em um risco incontornável, humanos que somos, cedo descobrimos o trabalho que dá a vida dos relativos, ou imperfeitos. Preguiçosos, começamos a acreditar sermos capazes de definir absolutos. Poderes. Estados. Posses. Religiões. Igrejas. Opiniões. Teologias. Deus. A preguiça de relativizar sempre gera absolutos entediantes.

Novamente, Deus relativiza. Agudiza a relação. Vira gente. Faz-se um de nós. Come e bebe com os mais relativos dos mortais, aqueles que os absolutos chamam de pecadores. Irrita-se com nossos discursos incondicionais, de tão dogmáticos. Experimenta nossas mais profundas fadigas, entre as mais tensas disputas de um poder que para ser inquestionável tem sempre que sacrificar alguém. Morre para escandalizar. O escândalo da desproporção. Tanta força e poder para esmagar um frágil e silente filho de Deus. Um elefante arrogante pisando uma formiga é a mais ridícula das bravatas. Deus encarnado é qualquer pretensão de absoluto ridicularizada e a recuperação de uma fé outrora dormente. Um Deus que vive a nossa vida e morre a nossa morte é a fé adrenalizada.

Nada melhor que o escândalo da cruz, de um Deus relativo a nós, para livrar-nos do sono de uma vida entediada. Jesus não é a encarnação do verbo por falta do que dizer. Ao contrário, porque depois de Jesus não falta o que dizer de Deus.

Elienai Cabral Jr.

Nenhum comentário: