22 maio, 2009

Se o conflito é a graça

Se o conflito é a graça paradoxal que dá forma à história, se a transgressão é o sopro que lhe infunde ânimo, então há embutida em toda história uma ambivalência essencial. Horrores grandes e inequívocos como a guerra são transtornados por pequenas lealdades e heroísmos que, se não os redimem, ao menos absolutamente desconcertam, porque são coisas boas que nascem de coisas ruins.

Mesmo histórias que perseguem com sucesso um final feliz não estão livres dessa contradição interna, porque também dependem, antes de se aquietarem no ponto final, de equívocos, de ameaças, de separações. Antes de ser premiado e justificado no fim, Jó ponderará incessantemente se os fins justificam os meios.

Essa ambivalência essencial da narrativa é pontuada formalmente pelo vocabulário de Gênesis, que esforça-se para explicar que o conhecimento do bem e do mal são simultâneos.

Não é – preste atenção – como se na bem-aventurança anterior à transgressão Adão e Eva tivessem conhecido apenas o bem; não é como se depois da queda lhes fosse acrescentado o conhecimento do mal. A árvore é desde a primeira menção estabelecida como “do conhecimento do bem-e-do-mal”. Ou seja, no momento primordial da transgressão o ser humano conhece ao mesmo o tempo, num único vislumbre terrível e singular, tanto um quanto o outro.

A lição, a atordoante lição, é que o bem não pode ser conhecido sem o conhecimento simultâneo e correspondente do mal. O próprio Deus não pode se dar ao luxo de viver num mundo inconcebível que abraça a percepção de um e vive na ignorância do outro (”o homem tornou-se como um de nós, conhecendo o bem e o mal”).

Na transgressão o homem depara-se simultaneamente com as maravilhas e terrores da autodeterminação, e entende pela primeira vez (pois o relógio já começou a correr) as implicações de tomar parte numa história que ainda não terminou. Entende que algo pode ser tentado para consertar o estrago que já foi feito, mas absolutamente tudo ainda pode dar errado.

Paulo Brabo

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