23 abril, 2009

A incubação do Espírito

Porque o que a ascensão serve para pontuar é que a ressurreição é solução infantilizante, insuficiente e, no fim das contas, contraproducente, se não for logo tirada do centro do palco. Se Jesus tivesse permanecido indefinidamente entre os discípulos após a ressurreição, teria sem alternativa se tornado ídolo – isto é, não seria entendido, não seria seguido, e seu terrível exemplo não seria assimilado. Se tivesse permanecido, teria na verdade anulado toda a sua obra, produzindo uma cultura paternalista e circular ao invés de um novo e admirável Espírito. Teria coberto o mundo em trevas, ao invés de se tornar a luz do mundo.

Porque intuíra essas coisas, Jesus mesmo observara: “se eu não for, ele não virá”. Se ele não fosse, a semente do Reino não chegaria a brotar; seu fermento não transtornaria a massa; seu testamento não deixaria herança.

Sua mera partida, no entanto, não produziu de imediato a solução para o problema que sua permanência não seria capaz de resolver. Sem Jesus, restou aos discípulos procurar incessantemente no céu a sua volta. Nada começou visivelmente a brotar ou a borbulhar.

O problema com uma alma iluminada é que ela produz uma grande sombra. Quanto mais admirável o exemplo, mais difícil torna-se imitá-lo. Quanto mais admirável o exemplo, menos eficaz ele se torna por essa paradoxal razão. A partida de Jesus deixara os discípulos mergulhados até o pescoço no problema paralisante da sua Sombra. De que modo imitar o mais atordoante dos exemplos? De que modo não ser completamente anulado por ele?

Inteiramente instruídos, como todos os homens, em imitar com eficácia os desejos dos outros, os discípulos viram-se totalmente incapacitados de imitar aquele que não desejava o que desejam os homens. De que forma imitar o desejo de Jesus? O que desejava Jesus? Por certo não o poder, o sucesso, o reconhecimento, o dinheiro, a performance, a aquisição, a segurança e a influência que todos desejam.

E esse Jesus, que claramente não podia ser copiado, deixara a incumbência não apenas de ser copiado pelos que tocara, mas de que esses transmitissem eficazmente a novos seguidores, essa tecnologia.

E indicou o caminho, indicando caminho algum: que apenas não saíssem de onde estavam até que o espírito começasse a brotar. A única coisa que os discípulos fizeram, portanto, enquanto esperavam pelo despertar sobrenatural de uma solução para o dilema da imitação de Jesus, foi permanecerem juntos. Não se dispersaram. Perseveraram na inclusiva unidade que jamais havia sido ousada, e essa teimosa permanência acabou produzindo, ela mesma, a solução.

Pois o que aconteceu nos dias que antecederam o Pentecostes foi precisamente o reverso do processo de vitimização que levara Jesus à cruz algumas semanas antes.

Na vitimização de Jesus, o desejo de todos pelo que todos não têm como possuir em conjunto forjara uma precária unanimidade que na verdade perpetuava e validava os antigos antagonismos e seus mecanismos. Na incubação do espírito, o desejo de todos pelo que todos podem possuir em conjunto despertara uma concórdia que recendia a eternidade e desmanchava as velhas diferenças no abraço da reconciliação.

Na fermentação da morte, o desejo mimético da comunidade de Jerusalém gerara uma inteligência coletiva perversa, assassina e subterrânea, que se manifestou paulatinamente em todos e terminou não beneficiando ninguém. Na incubação do espírito, o desejo mimético da comunidade dos discípulos despertou uma inteligência coletiva benigna, radiante e iluminante, que veio à tona simultaneamente através de todos e a todos beneficiou.

A imitação de Satanás produzira um crescendo irresistível de morte e exclusão. A imitação de Jesus culminou com um testemunho comunitário sem precedentes, com o legítimo transpor de barreiras ancestrais e com a efetiva inclusão de todos.

A imitação de Satanás é o pacto dissimulado da morte; a imitação de Jesus é a sinergia à descoberto da vida.

Pois o derramar do Espírito nada mais foi do que a intuição conjunta do espírito de Jesus. Não é de admirar que os trovões tenham baixado à terra e as línguas da luz divina tenham afagado as frontes. Naquela manhã os discípulos chegaram sem aviso e simultaneamente a uma conclusão ao mesmo tempo muito espiritual e muito terra-a-terra: que desejavam todos uma mesma coisa, e essa coisa era coisa nenhuma – ou, para ser mais exato, a coisa constantemente desejada por Jesus.

O processo de Satanás não fora apenas exposto, mas efetivamente revertido. O desejo mimético de uma comunidade, que até aquele momento da história fora canalizado para produzir apenas morte, discórdia e ancestral antagonismo, tinha sido revertido por Deus para gerar vida, harmonia e inédita reconciliação.

Porque o que havia em Jesus para ser imitado – o que Jesus desejava – era, naturalmente, o desejo de Deus, e nada além do desejo de Deus. Ele mesmo articulara as coisas dessa forma. O que perceberam e receberam os discípulos no Pentecostes foi o vislumbre de que o Espírito de Deus (com maiúsculas) é precisamente o mesmo que o espírito (com minúsculas) que havia em Jesus.

Entenderam que ser conduzido, como todos os homens, pelo desejo dos outros homens, representa escravidão e morte. Que ser conduzido pelo desejo é o mesmo que ser consumido pelo temor, e o espírito que havia em Jesus era de não-diluídos liberdade e destemor. Compreenderam que para ser como Jesus é preciso imitá-lo no que ele desejava, a libertadora, corajosa e todo-inclusiva vontade do Pai.

É por isso, não apenas para corresponder estruturalmente à única armadilha de Satanás, mas para anulá-la por completo, produzindo inclusão ao invés de exclusão (”naquele dia agregaram-se cerca de três mil pessoas”), que a inteligência divina do Espírito teve de esperar o momento de se manifestar simultaneamente em todos e em cada um. Quando encontraram o que havia em Jesus para ser seguido, os discípulos produziram imediatamente perplexos seguidores.

Aconteceu no momento em que foram todos capazes de intuir, iluminados pela perseverança na inclusão, a solução para o dilema da imitação de Jesus. Quando entenderam que, se deixassem de desejar o desejo que paralisa e aterroriza todos os homens, poderiam ser simultaneamente eles mesmos e como Jesus.

Paulo Brabo

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