06 novembro, 2008

Impunemente

Estou cansado de ouvir gente dizendo que não reconhece a legitimidade do Deus do Antigo Testamento por considerá-lo divindade patriarcal, irascível, xenófoba e vingativa; esse Deus sanguinário, garantem-me, não tem como ter algo em comum com o Deus de Jesus, que é bondoso, compassivo e gente boa – numa palavra, é amor. Acham fácil amar Jesus, mas consideram difícil não escantear Iavé na sua qualidade de mesquinho deus tribal.

Não direi, porque seria muito fácil, que pensar assim é ignorar o testemunho mais pertinente, já que pelo que sabemos o próprio Jesus apenas asseverou a sua relação de continuidade com a postura, os porta-vozes e as palavras do Deus do Antigo Testamento.

Eu, de minha parte, estou muito mais inclinado a colocar em dúvida a inspiração daqueles que, afirmando-se seguidores do dócil Jesus e de seu amoroso Pai, fizeram apenas patrocinar ódio, preconceito, exclusão e derramamento de sangue ao longo da história do cristianismo.

E como não? Ousamos questionar o caráter de Davi, que não sentiu nos ouvidos o terrível afago das bem-aventuranças, mas respeitamos como se fossem Escritura as tradições de promotores do ódio, ensinando-os em seminários que reivindicam para si a chancela do bom Jesus.

Gente como Justino Mártir (100-165), que afirmava que Deus havia dado a circuncisão aos judeus como sinal eterno de exclusão, “para que vocês sejam separados de todas as nações e de nós [cristãos], sofrendo tudo o que merecidamente sofrem”; gente como Eusébio de Cesaréia (275-339) e João Crisóstomo (349-407), que justificavam a inclemente perseguição aos judeus porque criam que nela Deus estave se vingando da morte do seu filho; gente como os autores do Manual dos Inquisidores (1376) e do Martelo das Feiticeiras (1487), provedores do combustível que alimentava os fogos da Inquisição; gente como Martinho Lutero (1483-1546), que queria ver queimadas todas as sinagogas e bradava pelo sangue derramado de milhões de judeus; gente como os batistas norte-americanos que vestiam cheios de entusiasmo o capuz da Ku Klux Klan e justificavam a escravidão com uma interpretação rasteira de Gênesis 9; gente como os perpetradores ideológicos da Noite de São Bartolomeu e da troca de massacres entre protestantes e católicos na Irlanda; gente como os membros da Igreja Batista de Westboro, que cantam alegremente, hoje mesmo no YouTube mais próximo de você, o quanto Deus odeia o mundo; gente como eu, que sou um canalha, um ladrão e um mentiroso, que não amo a ninguém como convém, que com a boca sirvo a Jesus, com o coração sirvo a mim mesmo e com as duas mãos e os dois pés impulsiono a locomotiva de exclusão social e devastação ambiental que é o capitalismo.

Fico com Davi, Saul e o massacre dos amalequitas, mas quero alçar a coragem de desafiar a autoridade de quem, não amando, demonstra não ter qualquer relação com o Deus de amor; quem, afirmando conhecer Jesus e ser credenciado pela sua autoridade, pisoteia o seu espírito e sua reputação.

Antes de apontarmos o cisco no olho de Deus, deveríamos atentar para a tábua que está no nosso. A história da Igreja, traçada impunemente em nome de Jesus, é mais sangrenta do que a de Iavé jamais foi.

Paulo Brabo

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