01 setembro, 2008

A mui santa participação política

Como cristãos, reformados, evangélicos, nascidos de novo, afirmamos a centralidade da pessoa e da obra de Jesus Cristo, como Senhor e Salvador, a autoridade das Sagradas Escrituras, a busca da santidade e a ênfase na missão integral da Igreja, de evangelismo, ensino, comunhão, serviço e profetismo.
Uma questão, porém, nos desafia: o que fazer com a nossa vida entre a conversão e a morte/arrebatamento? O que fazer com o exercício dos nossos dons para a edificação do Corpo e com as nossas vocações para o testemunho do reino de Deus e seus valores, evidenciando a nossa fé pelas nossas obras? Deveríamos ser — como alguém afirmou — apenas “pré-cadáveres cantantes”? Ou há um mandato cultural entregue pelo Criador à humanidade e recuperado, primeiro, por Israel e, depois, pela Igreja?

Esse projeto de vida, para os cristãos e para as comunidades de fé, tem sido condicionado pela corrente escatológica a que se filiam.

O “pós-milenismo a-tribulacionista”, predominante no movimento missionário da segunda metade do século 19 e início do século 20, tendia a um engajamento, uma participação nos movimentos sociais, com certo otimismo quanto ao caráter civilizatório da Igreja, culminando esse progresso com a volta de Cristo. O otimismo engajado dos “pós-milenistas”, a partir do início do século 20 (principalmente na América do Norte) deu lugar ao “pré-milenismo pré-tribulacionista”, bastante pessimista quanto ao impacto sociocultural da Igreja em sua missão, tendendo ao isolacionismo, à alienação, à adesão acrítica ao “status quo”.

Entre os dois pólos, temos permanecido nós, os “a-milenistas pós-tribulacionistas”, herdeiros dos reformadores do século 16 em nossa participação crítica realista, procurando levar a sério o ser “sal e luz” e obedecer à oração sacerdotal — quando Jesus pede ao Pai que não nos tire do mundo, mas nos livre do mal —, procurando seguir as pegadas de Jesus e encarnar o amor que é fruto do Espírito Santo.

Para tanto, contamos com as ferramentas das ciências humanas para melhor entender a conjuntura e a estrutura, e melhor nos posicionarmos e influenciarmos. Na história não temos aliados (mas co-beligerantes, como ensinava Schaeffer), e nem sempre conseguimos o melhor, mas o menos ruim possível.

Em 1822, o que faríamos, como cristãos, com a independência: apoio, oposição ou indiferença? E com a abolição, em 1888? E com a República, em 1889? E com o sindicalismo, nos anos 1920? E com a legislação trabalhista, nos anos 1930? E, mais recentemente, com a Constituinte e a redemocratização (1986-1989)?

A família, a vizinhança, o trabalho, os sindicatos ou os partidos são canais sociais do nosso testemunho em favor do bem-comum, que passa pela defesa dos interesses nacionais contra as potestades imperiais, da democracia contra o totalitarismo e o autoritarismo (ditaduras, monarquias absolutas), da liberdade responsável contra a opressão ou a anarquia, da justiça social contra a espoliação, a exclusão, os privilégios, a marginalidade, a violência, as diferenças não-naturais. Para tanto, devemos dar de comer aos que têm fome, dar condição de trabalho e renda para quem não a tenha mais, e promover um sistema de leis que acolham a vontade geral e um modo econômico de produção que resulte em frutos para todos.

Pode-se pagar um preço por procurar que a cidade dos homens reflita a cidade de Deus e não a cidade do diabo. Calvino, o reformador de Genebra, via o engajamento político (não necessariamente partidário, mas cidadão) dos cristãos como uma “sacrossanta vocação”.

O mundo nunca será perfeito antes da Nova Jerusalém, mas pode estar muito pior em razão da nossa omissão ou do nosso apoio aos mais egoístas por interesses próprios. O engajamento obediente é um sinal de santidade ativa.

Há a participação docente, intercessória e profética das igrejas como instituições, a dos cristãos individuais como cidadãos e a participação orgânica dos movimentos e instituições cristãs, levando em conta a conjuntura, as estruturas, as necessidades, as possibilidades, os dons e as vocações. A ação política (cidadã) não deve se limitar ao partidário nem, muito menos, ao eleitoral, mas a uma atitude de responsabilidade, sensibilidade, disponibilidade e intervenção no cotidiano, que é obediência e testemunho.

Cremos que a direita totalitária, a esquerda totalitária, a direita autoritária, a esquerda autoritária (ideológica ou fisiológica), as sociedades altamente estratificadas dos poucos com muito e dos muitos com pouco, e os modos de produção que concentram propriedade, renda, poder e saber não são consentâneos com os valores do reino de Deus, que professamos, encarnamos e promovemos.

A soberania nacional, a solidariedade internacional, o Estado Democrático Laico de Direito, a igualdade perante a lei, o pluralismo ideológico e partidário, a soberania popular, a justiça social e a propriedade de e para todos são avanços possíveis contra os pecados sociais e estruturais. Assim, também, tornamos o evangelho relevante à nossa geração!


Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política -- teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo -- desafios a uma fé engajada.

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