Sou feito cachorro: não abocanho sem antes cheirar. Cheirei e não gostei do cheiro. Cheiro de sangue. O filme do Mel Gibson sobre a morte de Cristo. Não fui assistir. Meu Deus não tem cheiro de sangue. Tem cheiro de criança suada, quando volta dos brinquedos, como o descreveu Alberto Caeiro. A psicanálise ensina que tudo o que a gente faz tem a cara da alma da gente. Conclui que o Mel Gibson é um poço de pecados para causar tanto sofrimento e N.S. Jesus Cristo. Cristo teve de sofrer aquilo tudo por causa dele. O filme, por tudo o que li, é uma expressão moderna de uma espiritualidade antiga que encontra os seus prazeres sado-masoquistas na contemplação de feridas, sangue e corações dilacerados por punhais. Os santos são sempre uns sofredores. Não conheço nenhum santo sorridente, alegre com a vida. Estão todos sofrendo perfurados por flechas, punhas, afligidos por feridas, etc. Um Deus que precisa que os homens sofram tanto para se sentir apaziguado – eu não o chamaria de Deus. Eu o chamaria do oposto... Quem gosta de ver os homens sofrendo é o demônio. O filme do Gibson tem por objetivo provocar sentimentos de dó e culpa naqueles que o vêem. Para que? Para poder dominá-los. Os que se sentem culpados são sempre fracos. Andam sempre de cabeça baixa. Estão sempre prontos a fazer a vontade daqueles frente aos quais se sentem culpados. Os judeus têm uma fina percepção do significado do sentimento de culpa. Inventaram essa piadinha. Uma mãe italiana, quando está furiosa com o filho, faz uma gritaria, joga pratos, pega o rolo de macarrão, o filho foge correndo pela porta enquanto ela diz: “Desgraçado, eu te mato...” A mãe judia, quando está furiosa com o filho, chega-se mansamente a ele, uma lágrima escorrendo pelo rosto, e diz bem baixinho: “Meu filho, eu me mato...” Há um hino protestante que diz o que eu disse de maneira absolutamente clara: “ Morri, morri na cruz, por ti. Que fazes tu por mim?” A cruz, vista pelos olhos do Mel Gibson, não liberta. Escraviza. Por isso não gostei do filme.
Rubem Alves
Rubem Alves
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