“O mais triste é a possibilidade de perpetuação do ciclo de abusos. Abusados que não se curam ou não percebem a condição a que se submetem, se tornam abusadores”
Sempre afeita à gradação de pecados, de tempos em tempos a sociedade elege alguns deles para figurar na categoria “hediondos”. Sem dúvida, a pedofilia aparece entre as primeiras posições das listas, independentemente do fator geográfico. Classificada como desordem mental e de personalidade do adulto, ela é considerada também como desvio sexual pela Organização Mundial de Saúde.
Se esse tipo de comportamento já é para lá de execrável, a combinação se torna ainda mais estarrecedora e explosiva quando o ingrediente religioso é acrescentado. Após inúmeros episódios de abuso virem à tona, a Igreja Católica tornou-se alvo de zilhares de processos e as indenizações fixadas somam milhões de dólares. Com freqüência, a cúpula romana tem sido acusada de acobertar os casos, numa tentativa inútil de desviar a atenção pública desse assunto indigesto e que tem maculado gravemente a imagem já um tanto combalida da instituição.
“O que a gente faz é por debaixo dos panos”, canta Ney Matogrosso. No caso de abusos sexuais, esses panos transmutam-se em cortinas que são descerradas num espetáculo que açula os ânimos da platéia, redundando em audiência com comoção, binômio onipresente na midiotia reinante. No entanto, esse tipo de ocorrência não se restringe ao clero católico. Jeff Anderson, advogado americano especialista em ações impetradas por vítimas de abusos sexuais, afirmou à revista Veja: “Luteranos, mórmons, testemunhas de Jeová, evangélicos... Diga-me o nome de qualquer grupo religioso e eu provavelmente já o processei”.
Vinde, meninos... e meninas
“É duro constatar a violência sofrida nos ambientes eclesiásticos! Vejo isso no dia-a-dia. Como já dizia o livro sagrado: há lobos em pele de cordeiro. Muitos se aproveitam da religião para cometer atos violentos (seja de caráter físico, sexual ou psicológico) contra os mais fragilizados. Ainda há muito o que se discutir sobre sexo e as coerções psico-religiosas do mais baixo nível em nome de uma ‘pureza’ insossa e traumática em nossas igrejas. Parabéns por tirar um pouco dessa poeira escondida sob luxuosos tapetes persas.”
Recentemente, escrevi sobre a hipocrisia que rola ao se tratar de sexo nas igrejas. Entre tapas e beijos, vários conselheiros e profissionais que cuidam da saúde mental me escreveram para desfi(l)ar experiências e ampliar meu parco (e parvo) repertório sobre o assunto. Muitos feridos também contaram seus relatos tristes. Não há tapetes suficientes para encobrir a poeira que alguns teimam em manter escondida.
Algo que me chamou a atenção foi a similaridade das conseqüências nefastas tanto da pedofilia quanto do abuso espiritual. Ambas as práticas são regulares nas igrejas cristãs e a cada dia aumenta o número de vítimas. Enquanto os holofotes são direcionados à pedofilia, o outro tipo de abuso é mais sutil e, infelizmente, mais comum. Entre diversos distúrbios, muitas vítimas de pedófilos desenvolvem problemas na área sexual. Quem foi alvo de abuso espiritual igualmente apresenta problemas que eclodem por vezes muito tempo após as ocorrências. Decepcionados com a sordidez daqueles que os prejudicaram, é comum que as vítimas passem a rejeitar quaisquer líderes eclesiásticos, chegando mesmo a revoltar-se contra Deus e abandonar os caminhos da fé.
Como nos casos de pedofilia, o prazer é substituído pelo espectro constante de cada episódio de violência vivido. A memória torna-se algoz desapiedada, fertilizando o solo do coração para o florescimento de sementes de mágoa e de vingança. A misericórdia e a graça divina são substituídas pela culpa e pela vergonha, retroalimentando a anemia espiritual.
A tua Palavra escondi
O pedófilo geralmente desenvolve estratagemas e planos cuja execução requer paciência e planejamento minucioso. Normalmente, o abusador é parente ou amigo da família da criança. A amizade cresce de forma paulatina até que ele seja alvo da confiança de sua futura vítima. Ao mesmo tempo que os laços de amizade facilitam sua ação, despertam na criança reações contraditórias e inúmeras vezes proporciona o pacto de silêncio necessário para que o abuso torne-se habitual.
No caso dos abusadores espirituais, os expedientes não são necessariamente tão engendrados. Um recurso comum é a ênfase em certos textos bíblicos. Líderes abusadores são fascinados por obter irrestrita admiração e colaboração incondicional de suas ovelhas. Cientes de que não possuem perfil à altura do servilismo cegueta almejado, apelam sem constrangimento a alguns versículos que acabam sendo repetidos como mantras. Para fugir das críticas, o mais invocado é aquele que recomenda “não tocar nos ungidos do Senhor”. Ao menor sinal de descontentamento entre as ovelhas, basta lembrar que “a rebeldia é como o pecado de feitiçaria”. Aos reticentes em oferecer apoio integral a qualquer tipo de iniciativa pastoral, é suficiente lembrar que “é melhor obedecer do que sacrificar”.
A tática de usar apenas três versículos para construir uma “teologia” cominatória parece ingênua; porém, basta observar a quantidade de ovelhas presas a esses grilhões ameaçadores para constatar sua total eficácia.
Os matreiros se preparam
Líderes abusadores apresentam-se como depositários de missões divinas especiais. Não raro exaltam sua pretensa humildade para esconder o apego a títulos e posições de destaque. Com freqüência, recusam qualquer tipo de papel coadjuvante e são chegados em slogans que retratem o tamanho de suas ambições.
Envoltos e aprisionados em suas próprias teias, recorrem novamente ao sobrenatural para afiançar seus planos emblematicamente faraônicos. Expressões como “Deus nos chamou”, “o Senhor está pedindo de nós” e “vamos envergonhar o Diabo” são comuns e mantêm alimentada a expectativa das pessoas. Se os resultados prometidos não aparecem, é preciso continuar estimulando o moral das ovelhas para que, em última instância, ao menos a irrigação de recursos não cesse. Líderes abusadores freqüentemente não prestam nenhum tipo de conta. Afinal, se Deus lhes confia empreitadas tão nobres e relevantes, por que se ocupar de detalhes de somenos importância? Como “Deus está no comando”, a comunidade não precisa conhecer estatutos e bastidores da instituição, tampouco temas mundanos como a aplicação dos recursos auferidos.
Você está em dúvida se o seu líder se enquadra no perfil de abusador? Uma dica interessante é analisar tanto o estilo de liderança como o modus operandi de ele formar o time de colaboradores diretos. Existe respeito pelas escolhas e opiniões dos liderados? Comentários e críticas são bem-vindos? O líder trabalha sinceramente em prol da unidade de seu entorno? Ou utiliza o manjadíssimo método de validar publicamente apenas os que não o questionam? Ao acreditar que são especiais, essas pessoas usam o reconhecimento público como esmola aos subordinados que abrem a boca apenas para reconhecer e legitimar sua “unção”. O mais triste é a possibilidade de perpetuação do ciclo de abusos. De maneira análoga ao que acontece em episódios de pedofilia, abusados que não se curam ou não percebem a condição a que se submetem, se tornam abusadores.
Tá lá um corpo estendido no chão
Inúmeras histórias inacabadas aguardam decisões de seus protagonistas para ter o desfecho alterado. Segundo Brennan Manning, “projetamos em Deus os piores sentimentos e idéias que temos sobre nós mesmos”. Avalie sua auto-estima e mantenha distância dos molestadores.
Se eventualmente pertence à outra categoria, lamento usar este espaço como espelho. Lembrando Jürgen Moltmann, “os criminosos dependem das experiências de suas vítimas se querem conhecer a si próprios, pois a dor perdura, enquanto a memória das próprias ações se dilui”. Aqui estamos... de frente pro crime.
Sérgio Pavarini
Jornalista e editor do pavablog.blogspot.com e do boletim semanal PavaZine#.
Sempre afeita à gradação de pecados, de tempos em tempos a sociedade elege alguns deles para figurar na categoria “hediondos”. Sem dúvida, a pedofilia aparece entre as primeiras posições das listas, independentemente do fator geográfico. Classificada como desordem mental e de personalidade do adulto, ela é considerada também como desvio sexual pela Organização Mundial de Saúde.
Se esse tipo de comportamento já é para lá de execrável, a combinação se torna ainda mais estarrecedora e explosiva quando o ingrediente religioso é acrescentado. Após inúmeros episódios de abuso virem à tona, a Igreja Católica tornou-se alvo de zilhares de processos e as indenizações fixadas somam milhões de dólares. Com freqüência, a cúpula romana tem sido acusada de acobertar os casos, numa tentativa inútil de desviar a atenção pública desse assunto indigesto e que tem maculado gravemente a imagem já um tanto combalida da instituição.
“O que a gente faz é por debaixo dos panos”, canta Ney Matogrosso. No caso de abusos sexuais, esses panos transmutam-se em cortinas que são descerradas num espetáculo que açula os ânimos da platéia, redundando em audiência com comoção, binômio onipresente na midiotia reinante. No entanto, esse tipo de ocorrência não se restringe ao clero católico. Jeff Anderson, advogado americano especialista em ações impetradas por vítimas de abusos sexuais, afirmou à revista Veja: “Luteranos, mórmons, testemunhas de Jeová, evangélicos... Diga-me o nome de qualquer grupo religioso e eu provavelmente já o processei”.
Vinde, meninos... e meninas
“É duro constatar a violência sofrida nos ambientes eclesiásticos! Vejo isso no dia-a-dia. Como já dizia o livro sagrado: há lobos em pele de cordeiro. Muitos se aproveitam da religião para cometer atos violentos (seja de caráter físico, sexual ou psicológico) contra os mais fragilizados. Ainda há muito o que se discutir sobre sexo e as coerções psico-religiosas do mais baixo nível em nome de uma ‘pureza’ insossa e traumática em nossas igrejas. Parabéns por tirar um pouco dessa poeira escondida sob luxuosos tapetes persas.”
Recentemente, escrevi sobre a hipocrisia que rola ao se tratar de sexo nas igrejas. Entre tapas e beijos, vários conselheiros e profissionais que cuidam da saúde mental me escreveram para desfi(l)ar experiências e ampliar meu parco (e parvo) repertório sobre o assunto. Muitos feridos também contaram seus relatos tristes. Não há tapetes suficientes para encobrir a poeira que alguns teimam em manter escondida.
Algo que me chamou a atenção foi a similaridade das conseqüências nefastas tanto da pedofilia quanto do abuso espiritual. Ambas as práticas são regulares nas igrejas cristãs e a cada dia aumenta o número de vítimas. Enquanto os holofotes são direcionados à pedofilia, o outro tipo de abuso é mais sutil e, infelizmente, mais comum. Entre diversos distúrbios, muitas vítimas de pedófilos desenvolvem problemas na área sexual. Quem foi alvo de abuso espiritual igualmente apresenta problemas que eclodem por vezes muito tempo após as ocorrências. Decepcionados com a sordidez daqueles que os prejudicaram, é comum que as vítimas passem a rejeitar quaisquer líderes eclesiásticos, chegando mesmo a revoltar-se contra Deus e abandonar os caminhos da fé.
Como nos casos de pedofilia, o prazer é substituído pelo espectro constante de cada episódio de violência vivido. A memória torna-se algoz desapiedada, fertilizando o solo do coração para o florescimento de sementes de mágoa e de vingança. A misericórdia e a graça divina são substituídas pela culpa e pela vergonha, retroalimentando a anemia espiritual.
A tua Palavra escondi
O pedófilo geralmente desenvolve estratagemas e planos cuja execução requer paciência e planejamento minucioso. Normalmente, o abusador é parente ou amigo da família da criança. A amizade cresce de forma paulatina até que ele seja alvo da confiança de sua futura vítima. Ao mesmo tempo que os laços de amizade facilitam sua ação, despertam na criança reações contraditórias e inúmeras vezes proporciona o pacto de silêncio necessário para que o abuso torne-se habitual.
No caso dos abusadores espirituais, os expedientes não são necessariamente tão engendrados. Um recurso comum é a ênfase em certos textos bíblicos. Líderes abusadores são fascinados por obter irrestrita admiração e colaboração incondicional de suas ovelhas. Cientes de que não possuem perfil à altura do servilismo cegueta almejado, apelam sem constrangimento a alguns versículos que acabam sendo repetidos como mantras. Para fugir das críticas, o mais invocado é aquele que recomenda “não tocar nos ungidos do Senhor”. Ao menor sinal de descontentamento entre as ovelhas, basta lembrar que “a rebeldia é como o pecado de feitiçaria”. Aos reticentes em oferecer apoio integral a qualquer tipo de iniciativa pastoral, é suficiente lembrar que “é melhor obedecer do que sacrificar”.
A tática de usar apenas três versículos para construir uma “teologia” cominatória parece ingênua; porém, basta observar a quantidade de ovelhas presas a esses grilhões ameaçadores para constatar sua total eficácia.
Os matreiros se preparam
Líderes abusadores apresentam-se como depositários de missões divinas especiais. Não raro exaltam sua pretensa humildade para esconder o apego a títulos e posições de destaque. Com freqüência, recusam qualquer tipo de papel coadjuvante e são chegados em slogans que retratem o tamanho de suas ambições.
Envoltos e aprisionados em suas próprias teias, recorrem novamente ao sobrenatural para afiançar seus planos emblematicamente faraônicos. Expressões como “Deus nos chamou”, “o Senhor está pedindo de nós” e “vamos envergonhar o Diabo” são comuns e mantêm alimentada a expectativa das pessoas. Se os resultados prometidos não aparecem, é preciso continuar estimulando o moral das ovelhas para que, em última instância, ao menos a irrigação de recursos não cesse. Líderes abusadores freqüentemente não prestam nenhum tipo de conta. Afinal, se Deus lhes confia empreitadas tão nobres e relevantes, por que se ocupar de detalhes de somenos importância? Como “Deus está no comando”, a comunidade não precisa conhecer estatutos e bastidores da instituição, tampouco temas mundanos como a aplicação dos recursos auferidos.
Você está em dúvida se o seu líder se enquadra no perfil de abusador? Uma dica interessante é analisar tanto o estilo de liderança como o modus operandi de ele formar o time de colaboradores diretos. Existe respeito pelas escolhas e opiniões dos liderados? Comentários e críticas são bem-vindos? O líder trabalha sinceramente em prol da unidade de seu entorno? Ou utiliza o manjadíssimo método de validar publicamente apenas os que não o questionam? Ao acreditar que são especiais, essas pessoas usam o reconhecimento público como esmola aos subordinados que abrem a boca apenas para reconhecer e legitimar sua “unção”. O mais triste é a possibilidade de perpetuação do ciclo de abusos. De maneira análoga ao que acontece em episódios de pedofilia, abusados que não se curam ou não percebem a condição a que se submetem, se tornam abusadores.
Tá lá um corpo estendido no chão
Inúmeras histórias inacabadas aguardam decisões de seus protagonistas para ter o desfecho alterado. Segundo Brennan Manning, “projetamos em Deus os piores sentimentos e idéias que temos sobre nós mesmos”. Avalie sua auto-estima e mantenha distância dos molestadores.
Se eventualmente pertence à outra categoria, lamento usar este espaço como espelho. Lembrando Jürgen Moltmann, “os criminosos dependem das experiências de suas vítimas se querem conhecer a si próprios, pois a dor perdura, enquanto a memória das próprias ações se dilui”. Aqui estamos... de frente pro crime.
Sérgio Pavarini
Jornalista e editor do pavablog.blogspot.com e do boletim semanal PavaZine#.
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