06 agosto, 2008

A luta entre o bem e o mau (e não é um erro de português)

“Se existe uma arena no universo, quem está lutando nela somos nós e o diabo, o rebelde contumaz que faz da guerra contra nós seu libelo contra Deus”

A língua forma a cultura. A língua decide como vamos pensar a respeito de um conceito ou, em outras palavras, como vamos internalizar um valor. Cada língua do mundo, ou grupo de línguas, explica a realidade à sua maneira. A língua forma a cosmovisão de um povo – tal cosmovisão, portanto, circunscreve-se dentro dos limites concetuais impostos pela língua. Até os cientistas da física moderna perceberam que chegaram a um limite em relação ao que conseguiam explicar e perceber dentro de sua cosmovisão. Fritjof Capra recorreu à religião taoísta chinesa para tentar explicar o que a ciência constatava. Isso pode parecer absurdo para alguns, mas para os etnolingüistas familiarizados com a diversidade de pensamentos e a multiplicidade de conceituação multilingüística, é apenas o passo natural que temos que dar na busca do conhecimento.

Até a ética da sociedade atual é afetada pelas mudanças lingüísticas, algumas “encomendadas” para refletir uma ambigüidade que não existe. Por exemplo, bebês no útero começaram a ser chamados de fetos, e agora apenas de tecidos, em inglês – tissue. Tal nomenclatura diminui o impacto provocado por sua morte pelo aborto, mesmo no final da gravidez, ou de usar live-tissues nos avanços da medicina, chegando ao cúmulo de considerar legal o assassinato com uma tesoura na nuca do bebê que já tem o corpo fora do útero, mas a cabeça dentro. Legalmente ele ainda é um tissue.

A língua também afeta nossa teologia. Recentemente, pensei numa mudança lingüística que pode nos revelar uma verdade que se oculta da maioria por causa da língua. Elimanaremos do dicionário o termo “mal”, escrito assim, com “l”. Na nossa cosmovisão indo-européia – no tempo que todas as línguas ocidentais modernas eram uma só –, o bem e o mal se opunham em igualdade de forças. Essa era a visão pagã de nossos antepassados e que os filósofos chamam de maniqueísmo. O grande Bem e o grande Mal lutando entre si; Deus e o diabo em pé de igualdade, lutando pelo poder sobre o mundo criado.

O Cristianismo é freqüentemente caracterizado como uma religião maniqueísta, e muitas vezes, na nossa vida, nos ensinos, até na oração, refletimos esse pensamento. Combatemos um mal onipresente, obcecados com o embate metafísico; às vezes perdemos, às vezes ganhamos. Combatemos pessoas, coisas, enfim, a cultura, como se elas fossem o mal materializado. Existe a batalha na Bíblia, mas é muito diferente. O bem e o mal não são forças paralelas e não são iguais de maneira alguma. Aliás, o mal com “l” nem existe. Não existe um mal conceitual, abstrato, transcendente – o único “mal” presente na terra dos homens é o mau como qualificação de ação, e não o mal substantivo.

A oposição existe entre Deus, a pessoa de amor, tudo o que diz respeito e ele, e a rebeldia. O pecado, exercido, praticado, pelos homens ou pelo diabo, é o que se opõe a Deus. Se existe uma arena no universo, quem está lutando nela somos nós e o diabo, o rebelde contumaz que faz da guerra contra nós seu libelo contra Deus.

O mal existe na medida em que nós o criamos. Ele nos cerca porque nós o produzimos. As trevas, se caminhamos nelas, são auto-produzidas; o diabo nos tenta, nos perturba e oprime, mas só tem espaço quando nós, em nossa rebeldia contra Deus, o convidamos. Podemos nos tornar maus por praticarmos habitualmente o mal, até que essas fibras de rebeldia sejam tecidas na nossa personalidade. Mas, enquanto vivermos, será o mau, nunca o “mal” absoluto, contra o qual lutaremos porque ainda seremos passíveis de redenção. O mal não é independente do bem – mal é a negação do bem. O “mal” é a ausência de Deus. A desobediência é o pecado principal dos seres criados. A explicação da cruz não é o bem vencendo o “mal”, mas é o amor de Deus, pagando o preço pelo mau – as nossas más escolhas.

Não posso deixar de pensar que, se vivêssemos o Cristianismo do bem e do mau, seríamos mais responsáveis. Amaríamos mais, obedeceríamos mais, nos esforçaríamos mais por retribuir com bem àquele que nos amou, mesmo sendo maus. Não posso deixar de olhar para o Brasil de hoje, um país de canalhice institucionalizada, de amoralidade sem compromisso social, do malazartismo absoluto, e pensar que, por mais que eu não queira admitir, a culpa disso tudo não deixa de ser minha também.

Bráulia Inês Ribeiro

está na Amazônia há 25 anos como missionária, é presidente nacional da JOCUM(Jovens Com Uma Missão) e autora do livro Chamado Radical (Editora Atos)

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