Memorizar versículos sempre foi uma prática distintiva dos protestantes. Uma memória com a promessa de municiar o crente para o enfrentamento da vida. Para cada situação há os recortes do texto bíblico capazes de diluir resistências, superar dúvidas, vencer embates pela razão, acalmar, motivar, consolar, sustentar o dono da memória enquanto vive.
Lembro dos cultos em que o louvor era seguido por um momento de recitação de versículos da Bíblia. Na Escola Bíblica, memorizar o versículo bíblico era condição para uma aula bem sucedida. O bom “evangelista”, este conquistador de adesões, destacava-se pela habilidade de sacar o texto, com a devida referência bíblica, apropriado para cada contestação dos resistentes à pregação. Uma pregação bíblica confunde-se entre protestantes com uma pregação que cita muitos textos bíblicos, mesmo que a exposição das idéias mostre-se rasa ou um lugar comum.
A mania de memória além de carregar a crença acrítica de que o conhecimento imediato do texto é posse plena da verdade, desprezando a mediação dos conceitos, também expõe a falência do projeto de quem dela faz uso: a busca desesperada de memória. Buscamos memória porque perdemos a presença. Quanto menos há, de mais lembrança carecemos. Quem faz o álbum das fotos é quem encerrou as férias. Quem, além do apaixonado por fotografia, gasta as suas férias para apreciar as fotos que dela está fazendo? O fato presente prescinde de memória. Ninguém precisa lembrar do que ainda está fazendo. Fixam-se lembranças do que agora está vazio.
Ninguém precisa se lembrar do que presencia. E quanto mais presentes nós estamos em um movimento mais dele nos esquecemos. A melhor imagem que me ocorre é a do motorista. Dirige bem quem se esquece dos mecanismos da direção e se ocupa tão somente do trânsito. Quem é o bom motorista? O que precisa listar de memória cada movimento do câmbio e sua sincronia com os pedais, ou quem o faz sem sequer se dar conta de que pressiona o pedal da embreagem à medida que encaixa a próxima marcha? Aprendemos a dirigir quando nos esquecemos dos mecanismos da direção enquanto dirigimos.
É assim com tudo o que é presente na vida. Quanto mais presente e pertencente a nós algo é mais dele nos esquecemos. É assim quando lemos, quando fazemos cálculos, quando jogamos, quando fazemos sexo, quando comemos, quando vivemos.
A dor é outro exemplo. Não nos lembramos das partes do corpo se com elas está tudo bem. Quando nos lembramos do dente é porque ele está doendo. A lembrança no corpo é sua doença.
Não pode ser diferente com a Bíblia. Ela é uma literatura que de tão identificada com a nossa vida é viva. Sua memorização é certificação de seu adoecimento ou morte. Sua presença em nossa prática, relações, escolhas, sentimentos, moralidade, afeições, é proporcional ao seu esquecimento. Se pudermos falar de uma mente bíblica, ou de viver biblicamente, diremos que uma prática bíblica é a que da Bíblia não precisa fazer referência para por ela ser afetada. Pois o que precisa ser ritualmente memorado está longe, tanto quanto se esquece de algo de tão presente que se faz.
Niezsche denuncia a memória como um mal humano na Segunda Dissertação da sua Genealogia da Moral. Chama a memória de desejo de controle do futuro. Precisamos de memória porque na ânsia de controlar o futuro fazemos promessas e com elas comprometemos nossa existência com o que não está mais presente. Essa necessidade de memória impede o esquecimento como o corpo doente é impedido da digestão. O indivíduo que busca a memória é como o apéptico, o que não faz digestão, regurgitando idéias mortas, ressentindo o que já passou.
A melhor Bíblia é a que esquecemos de tão digerida e absorvida por nossa vivência. A Bíblia que precisa ser memorizada é uma porção indigesta. Nem poderia ser diferente. Transformá-la em uma coleção sistemática, simétrica e absoluta de verdades é roubá-la de sua digestibilidade, sua profunda e radical penetração em nossa vida. A Bíblia que deixa de ser literatura, visto que é essencialmente narrativa e poética, torna-se morta de tão distante e estática. Um clamor desesperado à memória. Um mortuário da fé.
A Bíblia que está de fato em nós é a que esquecemos. De tanto que faz sentido. De tanto que nos permeia.
Elienai Cabral Junior
Lembro dos cultos em que o louvor era seguido por um momento de recitação de versículos da Bíblia. Na Escola Bíblica, memorizar o versículo bíblico era condição para uma aula bem sucedida. O bom “evangelista”, este conquistador de adesões, destacava-se pela habilidade de sacar o texto, com a devida referência bíblica, apropriado para cada contestação dos resistentes à pregação. Uma pregação bíblica confunde-se entre protestantes com uma pregação que cita muitos textos bíblicos, mesmo que a exposição das idéias mostre-se rasa ou um lugar comum.
A mania de memória além de carregar a crença acrítica de que o conhecimento imediato do texto é posse plena da verdade, desprezando a mediação dos conceitos, também expõe a falência do projeto de quem dela faz uso: a busca desesperada de memória. Buscamos memória porque perdemos a presença. Quanto menos há, de mais lembrança carecemos. Quem faz o álbum das fotos é quem encerrou as férias. Quem, além do apaixonado por fotografia, gasta as suas férias para apreciar as fotos que dela está fazendo? O fato presente prescinde de memória. Ninguém precisa lembrar do que ainda está fazendo. Fixam-se lembranças do que agora está vazio.
Ninguém precisa se lembrar do que presencia. E quanto mais presentes nós estamos em um movimento mais dele nos esquecemos. A melhor imagem que me ocorre é a do motorista. Dirige bem quem se esquece dos mecanismos da direção e se ocupa tão somente do trânsito. Quem é o bom motorista? O que precisa listar de memória cada movimento do câmbio e sua sincronia com os pedais, ou quem o faz sem sequer se dar conta de que pressiona o pedal da embreagem à medida que encaixa a próxima marcha? Aprendemos a dirigir quando nos esquecemos dos mecanismos da direção enquanto dirigimos.
É assim com tudo o que é presente na vida. Quanto mais presente e pertencente a nós algo é mais dele nos esquecemos. É assim quando lemos, quando fazemos cálculos, quando jogamos, quando fazemos sexo, quando comemos, quando vivemos.
A dor é outro exemplo. Não nos lembramos das partes do corpo se com elas está tudo bem. Quando nos lembramos do dente é porque ele está doendo. A lembrança no corpo é sua doença.
Não pode ser diferente com a Bíblia. Ela é uma literatura que de tão identificada com a nossa vida é viva. Sua memorização é certificação de seu adoecimento ou morte. Sua presença em nossa prática, relações, escolhas, sentimentos, moralidade, afeições, é proporcional ao seu esquecimento. Se pudermos falar de uma mente bíblica, ou de viver biblicamente, diremos que uma prática bíblica é a que da Bíblia não precisa fazer referência para por ela ser afetada. Pois o que precisa ser ritualmente memorado está longe, tanto quanto se esquece de algo de tão presente que se faz.
Niezsche denuncia a memória como um mal humano na Segunda Dissertação da sua Genealogia da Moral. Chama a memória de desejo de controle do futuro. Precisamos de memória porque na ânsia de controlar o futuro fazemos promessas e com elas comprometemos nossa existência com o que não está mais presente. Essa necessidade de memória impede o esquecimento como o corpo doente é impedido da digestão. O indivíduo que busca a memória é como o apéptico, o que não faz digestão, regurgitando idéias mortas, ressentindo o que já passou.
A melhor Bíblia é a que esquecemos de tão digerida e absorvida por nossa vivência. A Bíblia que precisa ser memorizada é uma porção indigesta. Nem poderia ser diferente. Transformá-la em uma coleção sistemática, simétrica e absoluta de verdades é roubá-la de sua digestibilidade, sua profunda e radical penetração em nossa vida. A Bíblia que deixa de ser literatura, visto que é essencialmente narrativa e poética, torna-se morta de tão distante e estática. Um clamor desesperado à memória. Um mortuário da fé.
A Bíblia que está de fato em nós é a que esquecemos. De tanto que faz sentido. De tanto que nos permeia.
Elienai Cabral Junior
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