15 maio, 2008

Contentamento

De que mais carece um homem senão de um olhar que não lhe condene, principalmente, no momento tenebroso quando se sentir arqueado de culpa? E que lhe devolva a sensação de saber-se acolhido por pura gratuidade, sem pedir explicações; e que o deixe pleno de paz, sem exigir nada.

De que mais carece um homem senão de um ombro que se oferece para dividir a carga, de um parceiro que não considera a ajuda um sacrifício? Para que, ao caminhar ao lado desse amigo, possa dizer que sua companhia é mais valiosa do que uma jazida de ouro.

De que mais carece um homem senão de um irmão que lhe estenda a mão no corredor escuro, quando as opções se mostrarem arriscadas? Basta que diga: “vamos tentar acertar uma dessas portas, não importa quanto errarmos” e desaparecerá o medo dos labirintos, das armadilhas, das setas malignas.

De que mais carece um homem senão de um ouvido para desabafar? Ele se sentirá feliz ao encontrar o confidente que não precisa responder, mas, calado, esquece. Sim, um amigo com amnésia para nunca alegar inconveniências antigas; não cobrar o porquê das insensibilidades despercebidas; um teimoso que deseja continuar ao lado, mesmo quando não for chamado.

De que mais carece um homem senão de poesia para fazê-lo vivenciar a linguagem criadora do universo? Somente o poema lhe fará vagar pelos sentimentos indizíveis do artista e sofrer com a angústia do profeta. Só a beleza da palavra é pão; só o verbo, carne; só o verso, um copo d’água.

De que mais carece um homem senão de música para embalar seus sonhos, descansar seu corpo fatigado e devolver graça para suas pernas trôpegas? Com melodia, ninguém perde leveza para acabar insensato. Cantar torna íntimo, nunca distante; grave, nunca pessimista.

De que mais carece um homem senão de colo para deitar-se e sentir-se amado? Todos carregam a nostalgia do aconchego uterino; todos desejam retornar ao ninho primordial e falar com um Deus que também é mãe. “Que meus olhos sejam tão mansos para com os outros como os teus são para comigo. Porque, se for feroz, não poderei acolher a tua bondade. Ajuda-me para que não seja enganado pelos maus desejos. E livra-me daqueles que carregam a morte nos próprios olhos”. (Rubem Alves).

De que mais carece um homem senão de uma noite insone para virar-se ao avesso e dialogar com suas sombras e não horrorizar-se? Nessas inquietações, sem relaxar, sempre é possível identificar dores que pedem cura. Nos conflitos internos, aprende-se a apalpar a asa ferida e evita-se o vôo precipitado antes que a madrugada chegue com suas réstias de esperança.

De que mais carece um homem senão de dormir profundamente e sonhar? E nessa experiência que prenuncia a morte, atravessar o deserto do silêncio até aprender a amá-lo; no descanso profundo e total, dialogar com a eternidade, vaga e misteriosa, até perder o medo da solidão e encontrar Deus.

De que mais carece um homem senão de espelhos que reflitam seu olhar sereno mesmo quando enfrenta a mais terrível tribulação? E mirando-se, não esquecer que, sobretudo, deve manter guarda constante de si mesmo para continuar solidário, misericordioso e amigo da justiça.

De que mais carece um homem senão de um Salvador que se pareça com um cordeiro não com um leão? E que seu Senhor lhe inspire a voltar o coração para os sofredores; a identificar-se com a sorte das ovelhas, não dos lobos, dos condenados, não dos carrascos.

De que mais carece um homem senão de paixão para acordar pleno de entusiasmo a cada manhã? E revestido de ideais, transformar-se em um hino que confronta os egoístas, fazendo da sua teimosia um sino que convoca o medíocre a abandonar seu discurso raso e irrelevante.

De que mais carece um homem senão de uma esperança que lhe desafie como o horizonte de um vasto oceano? E que esta esperança more além da história, além do tempo, além da vida; e ele, semelhante a um veleiro, não queira achar um porto, preferindo a aventura de navegar ao sabor do vento indomável.

Soli Deo Gloria.

Ricardo Gondim

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