11 março, 2008

Cartões: Dinheiro ‘de ninguém’

"Este dinheiro não é de ninguém. É dinheiro público, da prefeitura", afirmou o empresário André Wertonge Teixeira a Bruno Marzano, assessor da prefeita de Magé (RJ), em gravação registrada pela investigação de fraudes em compras que teriam gerado, em um ano, prejuízo de R$ 100 milhões em seis prefeituras fluminenses.
Essa a lógica de todos que abusam de recursos públicos. Fingem ignorar que se trata de dinheiro do povo. Bem diz Aristóteles: "O poder desperta a ambição e faz multiplicar a cobiça".

A poderosa máquina do Estado não gera um centavo; capta bilhões através do insaciável apetite do Leão: a multiplicidade de impostos, que agora a reforma tributária promete reduzir, unificar e até isentar... os ricos, evidentemente.

São vocês, leitor e leitora, que com seu trabalho sustentam os governos e pagam todos os salários, do presidente da República ao faxineiro da cadeia pública, dos juízes ao porteiro da escola municipal. Ora, a idéia de que dinheiro público "não é de ninguém" suscita, em pessoas desprovidas de valores éticos, aquela comichão de quem acha na rua uma nota de cinqüenta reais: o que não é de ninguém, é meu. Assim, o público é apropriado pelo privado e o coletivo pelo indivíduo.

Por que existem cartões de crédito e débito? Porque incentivam o consumo e evitam que se leve dinheiro no bolso nesses tempos em que amigos do alheio andam à espreita. De posse do cartão, perde-se um pouco a dimensão dos gastos. Basta passar a moeda de plástico numa maquininha e, pronto! O produto está adquirido e a conta paga.

Se essa síndrome do consumismo é estimulada pelas operadoras de cartões, que por isso cobram juros exorbitantes, o que dizer do funcionário público que lida com dinheiro que não é seu? Se não discerne entre o suficiente e o bastante, cai facilmente em tentação. Poupa o seu dinheiro e vai à farra e à forra com o "dinheiro de ninguém".

É claro que, entre os 11 mil portadores de cartões corporativos do governo federal, nem todos são tão glutões no consumo quanto o reitor da Universidade de Brasília. A maioria é gente honesta e criteriosa. E muitos servidores nem sequer aceitaram portar cartões. Pressentiram que a ocasião faz o ladrão. Porém, tudo indica que uns tantos não tiveram o menor escrúpulo de torrar o nosso dinheiro em consumo desnecessário, supérfluo. E, descobertos, ainda insistem em nos chamar de bocós ao apresentar malabarísticas justificativas de como oneraram os cofres públicos.

Agora, a CPI promete investigar o uso e abuso dos cartões, para saber quais passaram de corporativos a cooperativos... com o próprio bem-estar do usuário. O Planalto deu a mão à palmatória e se adiantou ao baixar instruções que limitam os saques em dinheiro. Reconhece, pois, que havia, sim, algo de podre no reino que não é o da Dinamarca...

Quem tem medo da CPI? Se portadores de cartões agiram com integridade, que se investigue e demonstre à nação que são caluniosas as denúncias de malversação. Se há corrupção, deve o governo se antecipar e punir exemplarmente os culpados. O que não se explica é temer transparência no uso do dinheiro público. Afinal, ele é, sim, de alguém. É de todos nós que trabalhamos, geramos riquezas e pagamos impostos. E esperamos retorno à altura de nossos direitos e necessidades. Temos, pois, o dever de fiscalizar e exigir prestação de contas da fortuna depositada em mãos das autoridades graças ao nosso sangue, suor e lágrimas. Apenas em janeiro deste ano, e sem a CPMF, o governo federal arrecadou R$ 62,5 bilhões.

Há 119 anos D. Pedro II escreveu em carta de 1o de janeiro de 1889: "A política de nossa terra cada vez me repugna mais compreendê-la. Ambições e mais ambições do que tão pouco ambicionável é."

Lidar com dinheiro alheio exige humildade, vocábulo que vem de húmus, terra, ter os pés na terra e não a cabeça nas nuvens. E requer auto-estima, saber viver segundo as limitações de seus próprios recursos, sem invejar os ricos ou pretender ingressar no seleto clube da opulência pelo beco da falcatrua.

Se corrupção existe é devido a uma única causa: a impunidade.

Frei Betto

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