A origem e desenvolvimento do protestantismo brasileiro pode ser compreendida a partir de dois termos que voltam a ocupar a pauta de discussões relevantes na chamada igreja evangélica brasileira: evangelicalismo, fundamentalismo. O termo “evangelical” é um anglicanismo que originalmente equivaleria à totalidade dos cristãos que se identificaram com a Reforma Protestante do Século XVI. Por esta razão muitas igrejas acrescentam ao seu nome o adjetivo “evangélico” como oposição a “católico”. Com o passar do tempo, o termo “evangelical” foi se distinguindo de “evangélico” até o ponto em que se pode afirmar que todos os evangelicais são evangélicos, mas nem todos os evangélicos são evangelicais.
O termo fundamentalismo tem raiz histórica na Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana Americana, 1910, que, em resposta ao liberalismo teológico europeu, definiu uma declaração de cinco fundamentos considerados inegociáveis à fé evangélica: os milagres, o nascimento virginal, a morte expiatória, a ressurreição de Cristo, e a autoridade das Escrituras. Estes cinco pontos foram desdobrados em uma série de 12 livretos chamados de Os Fundamentos (The Fundamentals). A respeito dos fundamentalistas também se pode dizer o mesmo que foi dito em relação aos evangelicais: todos os fundamentalistas são evangélicos, mas nem todos os evangélicos são fundamentalistas. Por enquanto, tomemos como certo que dentro do movimento evangélico (não católico) há pelo menos dois grandes movimentos, o evangelical e o fundamentalista.
O período evangelical contemporâneo, isto é, como movimento nascido dentro do segmento evangélico (não católico) tem início no Congresso Mundial de Evangelização em Berlin, 1966, convocado, dirigido e patrocinado pela Christianity Today. Outro marco do movimento evangelical foi o Congresso Mundial de Evangelização em Lausanne, 1974, que deu origem ao Pacto de Lausanne, cujo relator foi John Stott, mas tece a contribuição significativa dos teólogos latino-americanos Orlando Costas, Samuel Escobar e René Padilla. Desde então, o movimento evangelical está associado ao movimento de Lausanne ou espírito de Lausanne.
O Pacto de Lausanne resulta de um processo de aproximadamente três anos, cheio de conflitos internos, especialmente entre os evangelicais e os fundamentalistas norte-americanos, ligados à Escola de Crescimento da Igreja de Donald McGavran e Peter Wagner, que consideraram o Pacto progressista. De fato, os evangelicais criticaram o movimento fundamentalista em termos teológicos, ideológicos e estratégicos. René Padilla, em sua palestra “A evangelização e o mundo”, no Congresso de Lausanne fez severas críticas ao imperialismo norte-americano e sua abordagem pragmática dos métodos de evangelização. Entre os contundentes questionamentos de Padilla estão: a rejeição do “princípio de unidades homogêneas” como base para a estratégia missionária da igreja, considerado por ele mundano, pois impulsiona os seres humanos a serem cristãos sem cruzarem as barreiras que os separam; a condenação à identificação do cristianismo com o american way of life; a simplificação da conversão como mudança de religião, em detrimento da mensagem do reino de Deus que exige uma completa reorientação da vida em relação a Deus ao próximo e à criação; e a afirmação da imprescindível relação entre evangelização e responsabilidade social.
Desde Berlin, 1966, o movimento evangelical se desenvolveu na América Latina especialmente através dos quatro Congressos Latino-Americanos de Evangelização: CLADE I, Bogotá, 1969; CLADE II, Lima, 1979; CLADE III, Quito, 1992; e CLADE IV, Quito, 2000. No Brasil, os Congressos Brasileiros de Evangelização: CBE I e II, 1983 e 2003, e o Congresso Nordestino de Evangelização, 1988, além da atuação de instituições como Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), Aliança Bíblica Universitária (ABU), Centro Evangélico Brasileiro de Estudos Pastorais (CEBEP), Sociedade dos Estudantes de Teologia Evangélica (SETE), Corpo de Psicólogos e Psiquiátras Cristãos (CBPC), Visão Nacional de Evangelização (VINDE), Visão Mundial, e Associação Evangélica Brasileira (AEVB), foram determinantes para a consolidação do movimento evangelical.
Os aspectos relevantes que distinguem o movimento evangelical do movimento fundamentalista podem ser classificados como teológicos, ideológicos e estratégicos. O fundamentalismo se articula com ênfase no discurso apologético dogmático, mais preocupado com a defesa da fé bíblica, notadamente a partir de uma leitura literalista, moralista e filosoficamente racionalista das Escrituras Sagradas, o que acaba gerando uma postura inquisitorial, uma vez que sua identidade implica o combate violento a tudo e todos que compreende como inimigos da sã doutrina e da moral e bons costumes. O fundamentalismo é vítima da prepotência ocidental, que confunde Cristianismo com positivismo e evangelização com colonização, e pretende fazer com que a fé cristã seja equivalente à cultura do homem branco imperialista.
O movimento evangelical se articula prioritariamente a partir da realidade do reino de Deus e busca compreender e vivenciar todas as implicações do evangelho todo para o homem todo, proclamando a redenção integral do “homem e suas circunstâncias”, isto é, sua realidade social, política, cultural e espiritual, respeitando a pluralidade ética e cultural do Cristianismo histórico, desenvolvendo uma estratégia missionária encarnacional, com base na Bíblia como um documento divino, e portanto autoritativo, e humano, carente de constante contextualização e releitura para cada geração. Isso ajuda a compreender porque o movimento evangelical é também identificado como movimento da missão integral da igreja.
A partir destas poucas e elementares observações podemos identificar pelo menos duas agendas para a chamada igreja evangélica brasileira. A agenda fundamentalista está preocupada em descobrir métodos e metodologias capazes de apresentar uma mensagem e promover a adesão e filiação de pessoas às igrejas – divulgar uma verdade conceitual que funcione como instrumento para tirar pessoas do mundo e levá-las para dentro das igrejas, que sobrevivem de eventos, programas e projetos voltados para o público interno, bem doutrinado e bem comportado, à espera do céu. A agenda evangelical está ocupada em sinalizar historicamente a realidade do reino de Deus, buscando identificar-se com o próximo em sua complexidade pessoal, social, cultural e espiritual, visando à transformação da sociedade – através do serviço e da proclamação, levar “o evangelho todo para o homem todo, para todos os homens”, como preconizou Lausanne. A primeira, avaliada pela capacidade de produzir igrejas de sucesso, a segunda parafraseando Robinson Cavalcanti, comprometida em manifestar aqui e agora a maior densidade possível do reino de Deus que será consumado ali e além, de modo a oferecer ao mundo um anúncio profético do novo céu e a nova terra.
Ed René Kivitz
Um comentário:
Caro kivitz, você só esqueceu de falar que os evangelicais, na moiria dos casos, ignoram a Bíblia como palavra de Deus.
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